Centenas de famílias que ocupavam um terreno vazio no bairro Campo do Santana, em Curitiba, desde a noite de sexta-feira (28), cederam às ameaças da Polícia Militar do Paraná, juntaram seus pertences e, ainda da calçada, viram policiais da Rotam fazer uma “parede de segurança” enquanto outros colegas da corporação utilizavam seus cassetetes para retirar as lonas dos pedaços de madeira para, logo em seguida, um trator passar por cima de tudo. Foi assim que terminou, aproximadamente às 16 horas deste sábado (29), a ação da PM do Paraná.

“É um terreno de uma imobiliária forte, mais uma vez o poder econômico prevaleceu sobre o destino das famílias”, declarou Chrysantho Figueiredo, uma das lideranças do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto do Paraná (MTST), que organizou a ocupação.

“Foi a forma que a gente encontrou pra dar uma casa para as crianças”, explicou Jenyffer dos Reis, 24 anos, desempregada. Ela explicou que morava de aluguel numa casa pequena e que a família não conseguia mais arcar os custos de R$ 600, pois somente seu marido está empregado. Ela conta ter cinco filhos, de idades entre 10 meses e 7 anos, que deixou com parentes para tentar sorte melhor na ocupação. Sem ter para onde voltar, Jenyffer aguardava com seus pertences na calçada a carona para ser recebida na Ocupação Dona Cida, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) na Cidade Industrial de Curitiba. “Eu não acho errado o que a gente fez. Errado é o que a polícia fez com a gente”.

Jenyffer, 24 anos, foi uma das últimas a sair. Foto: Paula Zarth Padilha

Cronologia da desocupação

De acordo com o MTST, os policiais apareceram na Ocupação Getúlio Vargas, localizada na Estrada Delegado Bruno de Almeida, esquina com a rua João Carlos de Aguiar, na manhã deste sábado, por volta das 9h00, acompanhados dos representantes da empresa Construções e Incorporações, que reivindicava a posse do terreno. Quando o Terra Sem Males chegou ao local, às 10h30, já haviam cinco viaturas e dezenas de policiais e logo chegou uma unidade móvel. Questionados sobre como é possível que tantos policiais estariam atendendo uma denúncia de uma empresa privada, a resposta foi que o atendimento é o mesmo para quem ligar 190. A empresa teria contactado o comando da PM e eles estavam seguindo ordens.

Perto das 11h00, o gerente comercial da Piemonte, João Paulo, que se identificou como representante da empresa, foi até o local que o MTST reunia as famílias para apresentar uma proposta por parte da proprietária do terreno. Ele foi acompanhado pelo Tenente Machado, que naquele momento se identificava como responsável pela operação policial.

PMs utilizam cassetetes para desmanchar barracos de lona. Foto: Paula Zarth Padilha

João Paulo propôs a desocupação imediata em troca de uma possível reunião com a empresa na segunda-feira (31), dizendo que deixaria seu cartão de contato e que o MTST deveria encaminhar uma listagem das pessoas que ali estavam. Chrysantho, um dos líderes do movimento, ofereceu uma contra-proposta, de assumir o compromisso da desocupação após a reunião prometida.

Mas o único acordo que a empresa queria era a desocupação. A partir desse momento, a PM tomou as rédeas das ameaças, garantindo que iria sim desocupar, pretendia de forma pacífica, mas se fosse necessário uso da força, foram feitas afirmações que os líderes seriam detidos e que o reforço já havia sido chamado.

Terreno ao lado ficou tomado de viaturas. Foto: Paula Zarth Padilha

Comandada pelo 13º batalhão sob as ordens da Secretaria de Estado de Segurança Pública (SESP), conforme afirmou Capitão Caetano, que se identificou como comandante da operação, a reintegração seria feita sob uso da força, se necessário, sem precisar de ordem judicial, pois na avaliação dele estaria caracterizado o crime de esbulho possessório. A declaração foi dada aproximadamente às 12h00, quando anunciou que reforço de efetivo estava a caminho e esse seria o prazo para a desocupação pacífica.

Às 14h00 o reforço policial ainda não havia chegado. O comandante perguntava a todo momento se as famílias estavam desmontando os barracos. Mas eles haviam decidido ficar. Mesmo no momento que o MTST propôs o recuo por conta das ameaças policiais, as famílias quiseram continuar.

Famílias levando pertences embora. Foto: Paula Zarth Padilha

Quando o efetivo policial da Rotam chegou, as caminhonetes da Choque se juntaram às viaturas e às unidades móveis que já estavam lá, mas antes circularam o perímetro. As famílias começaram a recolher seus pertences e o MTST começou um cadastro ali mesmo, enquanto a choque descia das viaturas e fazia um “cordão de isolamento” um pouco mais afastada. Um trator também já estava posicionado.

Trator já estava posicionado para a limpeza. Foto: Camilla Hoshino

A “ação pacífica” da polícia foi ainda mais surpreendente. Mais de 50 policiais com capacetes e escudos da choque não escondiam bombas de efeito moral e armas estilo rifles. Eu perguntei porque havia aquele posicionamento e as armas e um deles respondeu que era para garantir a segurança da limpeza do terreno. Foi tudo muito rápido mas não havia mais ninguém nos barracos, o trator passou e arrancou tudo do chão e a polícia ali fazendo a segurança daquele procedimento contra as “ameaças”.

Um pouco mais distante ainda haviam famílias e nesse momento os demais soldados da PM utilizaram seus cassetetes para retirar as lonas pregadas nas madeiras e apressavam quem ainda tinha deixado colchões para traz. Enquanto a PM passava, a choque observava e o trator destruía tudo, os representantes da empresa Piemonte pareciam confraternizar com os policiais, tirando fotos, trocando sorrisos, objetivo cumprido.

Fogueira encerrou a limpeza. Foto: Paula Zarth Padilha

A cena final é uma fogueira e a destruição das estacas de madeira que por uma noite fria de Curitiba haviam sido a base de um sonho da luta por moradia. O terreno está lá, amplo, aberto, sem cercas, na beira do asfalto. Localizado há 30 quilômetros do centro de Curitiba. E ao lado desse terreno tem mais espaço vazio, onde as viaturas foram estacionadas. Não contei quantas, mais eram mais de dez. Durante todo o dia, o poder público não apareceu. Quando outros jornalistas chegaram, uma das abordagens ao comandante da operação foi algo como “os senhores estão aqui para garantir que não haja conflito, ou manter a segurança?”. E o comandante respondeu que a polícia estava ali para garantir a desocupação.

Ação policial abusiva

“Essa semana vamos representar o Ministério Público para que apure responsabilidade sobre ação abusiva da polícia”, declarou Fernando Prioste, advogado da entidade Terra de Direitos, que atua na defesa de direitos humanos. “Mais de seis horas depois de consolidada a ocupação do terreno urbano por famílias sem teto, a polícia executou uma reintegração de posse sem determinação da Justiça. É uma ação arbitrária e abusiva, pois ela só pode executar esse tipo de ação com uma autorização e uma determinação judicial”, explicou.

“É impressionante, até chocante que na véspera de eleição eles conseguirem mobilizar tanta viatura num contexto que a polícia tá preocupada com as escolas ocupadas, a polícia civil em greve, aparentemente foi uma mobilização extraordinária da polícia para fazer o despejo. Como sempre o poder econômico prevalecendo sobre as instituições do estado democrático de direito, a custa de muita gente que compromete até 50% do salário com aluguel”,  avaliou Chrysantho, do MTST. “As famílias que não têm para onde ir a gente vai reassentar elas nas ocupações que o movimento ajuda a organizar lá na CIC e os demais a gente vai continuar a manter contato com eles para ampliar a base do movimento e tentar mais ações que consolidem a luta por moradia e contra a especulação imobiliária”, finalizou.

Para a advogada Mariana Auler, do Instituto Democracia Popular, a polícia agiu sem a avaliação de quem tem competência para falar quem tem a posse legítima, que é a ordem judicial. “A gente tem que entender que é uma disputa de posse. Dá pra ver que é um terreno baldio, então a empresa nem exercia posse. Quando tem um processo de ocupação, essas pessoas passam a exercer posse sobre o terreno, então por isso que tem que existir uma disputa judicial, sobre quem vai ter a posse protegida, por isso se chama reintegração de posse”.

Mariana alerta que a PM agiu, em tese, na versão deles, sob a ordem da Secretaria de Segurança Pública, mas o problema é que não havia como verificar a situação durante a ação. “Qualquer coisa que acontecesse aqui seria responsabilidade da SESP e do comandante da operação, como o capitão Macedo se identificou, mas o interessante é que eles agiram como milicianos, como segurança privada, porque eles chegaram acompanhados do proprietário, de maneira intimidadora, ameaçando prisões e se prestando ao trabalho de fazer a limpeza do terreno”

A reportagem tentou um posicionamento oficial do comando da operação sobre os procedimentos presenciados, mas após o despejo, a polícia não se manifestou.

Colaborou Camilla Hoshino, do Brasil de Fato Paraná.