‘Uberização’ expõe elo mais fraco de uma cadeia de precarização

Problemas de saúde, incerteza e insegurança são reflexos de uma nova forma de relação de trabalho





Foto: Fernanda Carvalho/Fotos Públicas

Medo da violência e incerteza sobre a rentabilidade do negócio são algumas das situações que motoristas da Uber se deparam ao iniciarem a parceria com a empresa norte-americana. Um cenário de insegurança que não é mais restrito ao ramo de transporte individual de passageiros, atividade que inclui outras plataformas como Cabify e 99pop, e que se insere no debate do futuro das relações laborais com a reforma trabalhista que entra em vigor em 11 de novembro.

O surgimento de negócios como o da Uber, que dependem quase exclusivamente do trabalho independente, fez crescer uma nova era de informalidade, com a expansão do autoemprego, freelancers e trabalhos temporários. Porém a multinacional tem sua peculiaridade: apesar de se apresentar como uma empresa que apenas fornece plataforma de mediação entre motorista e clientes e, por consequência, “não tem vínculo empregatício com seus parceiros”, a Uber estabelece regras, critérios de avaliação, métodos de vigilância sobre o trabalhador e seu trabalho.

Como a empresa norte-americana não revela dados sobre o rendimento médio dos condutores, sob o argumento que prestam serviços aos seus parceiros e não são seus funcionários, é difícil perceber se a atividade será rentável. Em cada viagem, a empresa fica com 25% da transação e os outros 75% vão para o parceiro. Nessa relação entre “parceiros”, o motorista pode ter encerrada a “parceria” sem qualquer esclarecimento da plataforma, como apontam os trabalhadores.

Essa relação unilateral de trabalho, bem como outros apontamentos de condutores e condutoras ganham voz com a multinacional apenas em pesquisas de satisfação periódicas. “Temos muitas questões que tratamos como falhas no aplicativo e já expusemos à Uber através de pesquisas de satisfação que são enviadas aos motoristas, mas até o momento não houve nenhuma mudança significativa”, aponta Klinger, motorista de Uber em Curitiba, que preferiu não ter o sobrenome identificado.

Insegurança

Entre os problemas relatados está o fato de os motoristas não saberem o destino do passageiro no ato da aceitação da chamada; não terem a foto do passageiro no aplicativo, conforme é exigido do motorista, fato que poderia dar mais segurança aos trabalhadores. Insegurança que tem afastado trabalhadores da atividade.

“Vários conhecidos pararam de trabalhar exatamente por conta da insegurança. A maioria tem família, filhos. O caso da semana passada foi um caso emblemático que teve mais exposição”, diz o motorista, referindo-se ao assassinato de Alex Srour Ribeiro, 28, motorista de Uber encontrado morto no dia 27 de setembro em Piraquara, região metropolitana de Curitiba.

Como forma de protesto pela morte do colega, alguns motoristas de Uber de Curitiba não estão aceitando corridas durante dois períodos ao longo desta semana, em horários considerados de pico, das 6h às 9h e das 17h às 19h. Eles querem chamar a atenção da empresa estrangeira para que melhore a coleta de dados de usuários que cadastram pela plataforma. “Hoje não temos quase nenhum respaldo da Uber quanto trata-se de questões de segurança”, comenta o condutor.

Problemas de saúde também são rotina entre motoristas de Uber. “Toda essa insegurança tem nos afetado psicologicamente e emocionalmente. Estou me sentido meio depressiva e com suspeita de síndrome de pânico”, comenta Silvani, condutora que também preferiu não ter o sobrenome identificado. Ela conta que já passou por duas situações de risco no trabalho. Em uma delas conseguiu escapar de um assalto à mão armada e na outra sentiu-se acuada por três passageiros que estavam sob efeito do uso de drogas. “Nunca tive medo de sair de casa, mas devido a tantos acontecimentos estou com medo. Me mantenho porque preciso, para complementar a renda”, comenta a condutora que tem optado por trabalhar somente durante o dia.

Transferência de riscos

Mais que uma simples eliminação de direitos associados ao trabalho, essa nova etapa da exploração do trabalho, conhecida como “uberização”, também é uma transferência de riscos e custos ao trabalhador, como explica o advogado trabalhista Christian Marcello Mañas. “As medidas implementadas em decorrência dessa modificação das relações de trabalho tornam evidente a precarização da relação capital e trabalho. Exemplo disso é a pejotização na relação de trabalho onde os elementos clássicos do Direito do Trabalho, jornada e salário, estão no segundo plano. Infelizmente essa lógica do capital tem prevalecido o que fica mais evidente por conta da aprovação da reforma trabalhista que entrará em vigor em novembro de 2017”, comenta.

O discurso do empreendendorismo, segundo o advogado, tem seduzido a população para buscar atividades como a plataforma da Uber, especialmente neste momento de alto índice de desemprego e perda de poder aquisitivo.

“Alguns chamam esse fenômeno de “uberização” do trabalho porque o mercado vende a ideia de que basta um esforço pessoal para se ter a chave da vitória. Pelo contrário, é aí que reside a questão de que essas pessoas se submetem a um contrato precário com longas jornadas de trabalho e ausência de qualquer garantia trabalhista”, acrescenta Mañas.

“Just in time”

O cenário de uberização no mundo do trabalho tende a aumentar e se ampliar para outros setores nos próximos anos com a ampliação da terceirização e a ausência do Estado nas relações de trabalho prevista na reforma do governo Michel Temer. Não será estranho hospitais, universidades, empresas de comunicação passarem a adotar esse modelo, utilizando-se do trabalho de seus colaboradores “just in time”, de acordo com suas necessidades.

Um destes exemplos ocorreu em outubro de 2016, quando em meio ao debate sobre terceirizações passou despercebido de muitos uma lei sancionada pelo governo Temer. A lei “Salão parceiro – profissional parceiro” desobrigou proprietária(o)s de salões de beleza a reconhecerem o vínculo empregatício de manicures, depiladora(e)s, cabelereira(o)s, barbeiros, maquiadora(e)s e esteticistas. O estabelecimento torna-se responsável por prover a infraestrutura necessária – os demais trabalhadores seguem sendo reconhecidos como funcionários – para que suas “parceiras” e “parceiros”, agora legalmente autônomos, realizem seu trabalho.

Vínculo trabalhista

Em julho deste ano, um escritório de advocacia do Paraná ajuizou uma ação contra a Uber para que a empresa seja responsabilizada pelo pagamento de um veículo de um motorista durante sua jornada laboral. O trabalhador foi assaltado enquanto levava uma passageira até a sua residência e o caso não foi sequer levado em consideração pela empresa, situação que o levou a buscar a Justiça do Trabalho.

“A Uber somente lamentou o ocorrido, contudo, jamais se comprometeu em ressarcir o valor do veículo. Tampouco deu respostas ao trabalhador que ficou com o prejuízo material, do automóvel, além dos psicológicos em virtude da violência da qual foi vítima”, explica a advogada do escritório, Constance Moreira Modesto. A ação, que tramita na 22ª Vara do Trabalho de Curitiba, tem o objetivo de indenizar material e moralmente o trabalhador, que não teve o veículo ressarcido até o momento. Além disso, a ação apresenta uma série de requisitos que comprovam o vínculo trabalhista pungente entre a referida empresa e o motorista.