Sobre eliminatórias, “entregadas” e um documento histórico único

Copa de 1978 ficou marcada pela "aliviada" peruana e interferência da ditadura militar no mundial





Garantido na Copa do Mundo da Rússia, o Brasil recebe na noite desta terça-feira (10) o Chile pela última rodada das Eliminatórias Sulamericanas. Com o primeiro lugar assegurado, a expectativa para o jogo está na possibilidade da seleção de Tite dar uma “segurada no pé” para prejudicar os rivais argentinos que estão na degola e podem ficar de fora da Copa de 2018 e, consequentemente, amargarem uma fila de 25 anos sem títulos.

Nas discussões acaloradas e apaixonadas do futebol, vale até mesmo a justificativa da correção de uma injustiça histórica para uma eventual “aliviada canarinha”. Em roda de torcedores e em alguns noticiários tem sido citada a Copa do Mundo de 1978, disputada no país vizinho em uma época assolada pela inflação e governada pela ditadura militar do General Videla. Aquele mundial foi vencido pela dona da casa em uma disputa com fatos “incomuns”. O Brasil foi eliminado após uma improvável goleada dos argentinos frente ao Peru.

A Argentina fazia parte do mesmo grupo, tinha o mesmo número de pontos ganhos que o Brasil e jogaria mais tarde no mesmo dia, precisando vencer os peruanos por uma diferença de quatro gols para tirar os brasileiros do páreo e jogar a final com a Holanda. Tarefa difícil, pois o Peru vinha fazendo uma competição regular. Porém os hermanos acabaram goleando por 6 a 0.

Desde então a Copa de 1978 ficou marcada pela “entregada” dos peruanos e pela possibilidade do regime militar argentino ter interferido diretamente no resultado das partidas. Ainda que não comprovada a compra do mundial, é fato que o General Videla e sua trupe usaram o futebol para mascarar as atrocidades de seu regime; um dos mais sanguinários do Conesul.

Passados 39 anos da Copa na Argentina e diante dos debates sobre uma possível “entregada” do Brasil, um assunto me chamou atenção e fez lembrar de um documentário que serve de indicação aos leitores do Porém.net. “Memórias do Chumbo: O Futebol nos tempos do Condor”, resultado de uma grande reportagem do jornalista e historiador Lúcio de Castro, produzida no ano de 2012 para ESPN Brasil.

A série dividida em quatro partes mostra como as ditaduras militares na América do Sul que integraram a Operação Condor – a ‘multinacional do terror’ – estiveram presentes no futebol. Muito já tinha se falado sobre o envolvimento do futebol e política e como o esporte foi usado como propaganda por esses regimes autoritários, porém, particularmente, acredito que esse deva ser o material mais aprofundado sobre essa relação.

O esporte bretão e a pátria, o futebol e o povo, dois elementos que sempre estiveram unidos. Com frequência políticos e ditadores flertaram com esses vínculos de identidade. Mussolini usou as vitórias da seleção italiana para fortalecer o regime fascista na Velha Bota, assim como para os nazistas o futebol era uma “Questão de Estado” e para os franquistas espanhóis o Real Madrid era um modelo de legitimação, uma espécie de “embaixada ambulante”.

O voo do Condor

A reportagem de Lúcio de Castro passa por quatro países de nossa América: Argentina, Chile, Uruguai e Brasil – países que tem em comum a paixão pelo futebol e a política. São várias passagens marcantes nas quatro partes do programa; na Argentina onde a algumas quadras do Monumental de Nuñes – estádio do River Plate e principal palco dos jogos da Copa do Mundo de 1978 – funcionava um dos maiores centros de tortura da ditadura argentina.

Fatos marcantes da ditadura de Pinochet, a derrubada de Salvador Allende, a partida “kafkaniana” disputada por somente uma equipe e histórias do Estádio Nacional que serviu como campo de concentração das vítimas do regime. Histórias em terras charruas, do Mundialito de 1981 no Uruguai, a “subversão” do ex-zagueiro Hugo De Leon (que vestiu a camisa do Grêmio) e a primeira vez que o povo gritou: “Se va a acabar, se va a acabar la dictadura militar!”.

Documentos e passagens reveladoras dos Anos de Chumbo no Brasil e da seleção que foi mais utilizada pelos militares: o excrete canarinho de 1970. Com um arquivo vasto de pesquisa, Lúcio esmiuçou o que foi esse período onde os setores conservadores e elitistas temiam a “ameaça vermelha”, preocupavam-se com os ventos que sopravam do Caribe, com o charme dos barbudos de Sierra Maestra e com a possibilidade de “novos Vietnans” em pleno Conesul.

O “João Sem Medo”

Ditaduras tem o poder de confiscar símbolos nacionais e por aqui isso foi muito bem feito, como mostra o documentário. “Ame ou deixe-o” e “Pra Frente Brasil” que o digam. O documentário detalha a perseguição implacável a João Saldanha, o “João Sem Medo”. Comunista convicto, foi derrubado do cargo de técnico da Seleção pela ditadura e sofreu uma perseguição voraz dos militares, sendo inclusive proibido de fazer a cobertura esportiva da delegação brasileira no México. Então contratado pela BBC para fazer artigos sobre a copa, Saldanha teve credenciais negadas pela então CBD [Confederação Brasileira de Desportos] em virtude de seus comentários considerados “incendiários”.

Memórias do Chumbo traz “furos jornalísticos” como o caso do major Roberto Câmara Guaranys – torturador do regime – que foi o chefe de segurança da delegação brasileira na Copa do México; uma entrevista com o jornalista Luis Claudio Cunha, autor do livro “Operação Condor: o sequestro dos uruguaios”, com detalhes do sequestro que teve participação do ex-jogador Didi Pedalada, que após passagens por vários clubes – entre eles o Internacional – foi prestar “serviços” ao DOPS gaúcho.

Memórias do Chumbo: O Futebol nos Tempos de Condor é uma ótima sugestão para aqueles que são apaixonados por história, por futebol e por política. Fundamental para pesquisadores de um tempo de censura, suspensão do direito de votar, intervenção em sindicatos, cassação de direitos políticos, proibição de atividades ou manifestações de natureza política e fim do Estado de Direito.

Agraciado pela participação especial do saudoso Eduardo Galeano – outro pesquisador sobre o tema – Lúcio de Castro foi autor de um trabalho jornalístico único. Um documento histórico primordial no momento em que se discute a recuperação da memória e ainda se cobram punições àqueles que cassaram direitos dos trabalhadores, torturaram, assassinaram com garras do Condor e seguem impunes. Fundamental neste momento que muitos pedem o retorno de tempos sombrios.

E, voltando as quatro linhas e a última rodada das eliminatórias, particularmente não acho que o Brasil deva entregar o jogo para o Chile. Que 1978 fique enterrado no passado. Que tudo se decida sem interferência externa. Ainda que eu acredite que grande parte de nossos hermanos não pensariam da mesma forma se estivessem em nossa condição.

Confira nos links abaixo o documentário de Lucio de Castro dividido por episódios.

Argentina: https://youtu.be/cCb_UjiskbA
Brasil: https://youtu.be/cViE1fZ3tzA
Chile: https://youtu.be/jsoL-tQQuX4
Uruguai: https://youtu.be/PBB6YQEbSwg