Um espectro ronda o Brasil. O espectro da volta da censura. Abolida com o fim da ditadura militar, esse fantasma tem voltado com o patrulhamento ideológico nas artes, na cultura e nos ambientes escolares. Projetos de leis, recolhimento de conteúdos didáticos em escolas públicas, cancelamento de exposições artísticas e de performances em museus, proibição de peças de teatro, notificações judiciais para artistas e músicos, mudanças nas normas sobre direitos humanos no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e legislação para retirada de conteúdos que “desagradem” políticos na internet são algumas iniciativas do arcabouço reacionário que atenta contra liberdades individuais e de expressão.

Embora não tratar-se de um fenômeno novo, esse levante conservador está repaginado e ganhou novos protagonistas nos últimos meses. A atual caça às bruxas, inflamada por parlamentares da bancada evangélica e setores fundamentalistas da religião, ganha apoio de movimentos que se proclamam “liberais”, grupos que pedem intervenção militar e um governo mergulhado em escândalos de corrupção e com o pior índice de aprovação desde a redemocratização do país. A atual conjuntura assemelha ao período que antecedeu o golpe militar de 1964, quando a repressão confiscou livros em bibliotecas públicas, proibiu mostras de arte, peças de teatros, destruiu filmes e álbuns lançados por músicos. No mesmo período, o regime promoveu cortes de verbas no setor cultural, controle seletivo em editais, isolando o Brasil do resto do mundo nas discussões artísticas da época.

50 anos do Golpe da Ditadura no Brasil. Foto: Elói Corrêa/GOVBA

Reflexo da intolerância e radicalização religiosa, esse retorno do obscurantismo preocupa historiadores, artistas, advogados e cientistas políticos. Nada tem escapado à tentativa de controle de setores fundamentalistas. “A discussão tomou um rumo tão insano que não há como se ter um simples diálogo sobre o conceito da arte. Tudo isso se soma a drástica queda da qualidade auferida à educação formal das escolas e universidades em todos os seus seguimentos”, aponta Marcelo Navarro, advogado e cientista político em Cascavel, no oeste do Paraná. “Não é possível compreender a crítica se princípios básicos de tolerância não são difundidos. Apenas a minha arte é possível? Apenas o clássico é aceitável? Chama atenção o boicote aos produtos da Rede Globo, mas não a sua tendenciosa defesa aos interesses econômicos do grande capital. A questão está em seu posicionamento cultural e de tolerância. Isso é muito perigoso”, ressalta.

Guilherme Daldin, produtor audiovisual e integrante do movimento Cultura Resiste, afirma que o patrulhamento ideológico na arte, cultura e educação é uma estratégia do grupo político que tomou de assalto o poder com o golpe que derrubou a petista Dilma Rousseff (PT) da presidência da república. “Não é um patrulhamento espontâneo de pessoas conservadoras ou que querem coibir supostos ‘abusos’ na arte. Ele parte de uma visão tática do grupo que tomou de assalto o poder após o impeachment. São respostas também às manifestações artísticas, como a do Festival de Canes, aos protestos pelos cortes no Minc [Ministério da Cultura] e reação a parte do setor intelectual da cultura e da classe média que apoiam governos mais progressistas. Esses grupos de direita querem transformar o artista naquele cara que ‘mama’ na Lei Rouanet até ao ponto de transformá-lo em pedófilo por exemplo”.

Entre os objetivos desses grupos que pregam a “moralidade”, segundo Daldin, estaria o desvio do foco dos problemas reais do país. A intenção seria enfatizar a bandeira “moral” e atrair uma parcela da população para dividendos eleitorais um ano antes das eleições. Em nome da pretensa defesa intransigente da família, a agenda política do país estaria sendo modificada. “A direita não pode ir às ruas defender suas pautas bárbaras como fim da aposentadoria, fim dos direitos trabalhistas, entrega dos recursos naturais e das empresas públicas. Ela não consegue apresentar um programa real de desenvolvimento econômico e social, muito menos uma candidatura popular capaz de derrotar o ex-presidente Lula em 2018. Portanto, sua saída é uma agenda política que divida o país entre ‘famílias de bem’ e ‘pervertidos’”, comenta o produtor. “Como não podem pautar uma agenda neoliberal explicitamente, eles preferem um país polarizado numa agenda moral. É nesse cenário que crescem personagens como Jair Bolsonaro, que não sabe debater uma linha sobre economia, mas que se utiliza desse discurso moral e apolítico”, acrescenta.

O reflexo de acúmulo de derrotas da direita nas últimas eleições presidenciais reforçou essa polarização. “Esse acúmulo, essas sucessivas derrotas eleitorais da direita, contribuiu para a polarização de dois grupos muitos específicos. As manifestações de 2013 fizeram com que as redes sociais servissem de instrumento útil de socialização dos iguais e de identificação de um discurso que não me interessa. Com o impeachment da Dilma e ascensão da direita através dos asseclas do Michel Temer, somado com todas as prisões e delações da Lava-Jato, a polaridade acentuou-se e as manifestações nas redes sociais ficaram mais radicalizadas”, lembra Marcelo Navarro.

Protestos pedem mais autoritarismo no país. Foto: Júlio Carignano.

Imediatismo e intervenção militar
Nestes momentos de turbulência política a sociedade opta por soluções rápidas e de fácil digestão como alternativa, como por exemplo, a redução da maioria penal, criminalização de movimentos sociais, liberação do porte de arma e aumento do encarceramento, aponta o cientista político. “São posicionamentos de fácil absorção das pessoas que assistem os telejornais e novelas e que querem o afastamento de uma discussão política mais elaborada. Alias, dizem com todas as letras que odeiam a política e não se dão conta das contradições de um mundo complexo, plural, democrático e com desigualdade social e econômica brutal e que tem aumentado nos últimos anos”, afirma Navarro.

A volta do regime militar, pregada por movimentos intervencionistas e por parlamentares como Jair Bolsonaro (PSC-RJ), é uma dessas medidas imediatistas. “São medidas pregadas por aqueles que querem resolver seus problemas passando por cima de tudo e de todos. É uma retórica tão simplória, mas que assusta ao saber que associações comerciais e outras agremiações de classe média alta são partidárias deste discurso. Esperava-se que o acesso à informação e uma educação superior pudesse ser um freio inibitório para isso, mas o seu crescimento só demonstra que a nossa elite economia está sofrendo de ansiedade crônica”, comenta o advogado.

No Paraná, a Associação Comercial e Industrial de Ponta Grossa (ACIPG) emitiu nota oficial declarando apoio ao general Antônio Mourão, que declarou ser favorável a uma intervenção militar como forma de solucionar problemas de corrupção no país. Em entrevista à imprensa no mês de outubro, o deputado federal Evandro Roman (PSD-PR) também defendeu a volta de um regime militar. “Sou favorável que entrasse um regime militar por quatro anos e entregasse novamente o poder através de eleição”, disse na oportunidade.

Estudantes reagem a tentativa de censura em escolas. Foto: Leandro Taques

Lei da Mordaça avança nos espaços públicos
Avança nas casas legislativas da União, estados e municípios, os projetos de lei que buscam cercear o debate político nos ambientes escolares. Tais propostas estão no escopo do denominado programa “Escola Sem Partido”. Embora várias proposições neste sentido já tenham sido consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF), parlamentares ligados à bancadas evangélicas seguem apresentando propostas em câmaras de vereadores e assembleias legislativas por todo o país.

Na Câmara de Curitiba, o projeto também conhecido como “Lei da Mordaça” foi apresentado em julho pelos vereadores Ezequias Barros (PRP), Osias Moraes (PRB) e Thiago Ferro (PSDB). Em Paranaguá, litoral do Paraná, a lei municipal que proibia estudos de temas relacionados a gênero e orientação sexual foi derrubada em junho por determinação do ministro do STF, Luís Roberto Barroso. Segundo ele, proibir estudos e debates sobre gênero e orientação sexual na escola “contribui para a desinformação das crianças e dos jovens a respeito de tais temas, para a perpetuação de estigmas e do sofrimento que deles decorre”.

No dia 24 de outubro, a votação do projeto de lei do deputado Missionário Ricardo Arruda (PEN) que institui o Programa Escola sem Partido no sistema estadual de ensino foi adiada na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa do Paraná. O relatório apresentado foi alvo de pedidos de prazo para ser analisado com mais calma, porém a proposta deve voltar ao debate em breve na Alep.

Dois dias depois a Universidade Federal do Paraná (UFPR) aprovou moção contrária ao projeto de “Escola sem Partido” que tramita no legislativo paranaense. A decisão foi tomada pelo Conselho Universitário, mais importante órgão de direção da universidade. Segundo o texto aprovado, a UFPR vê com “preocupação” projetos que visam “tutelar, limitar ou policiar a liberdade de pensar, ensinar e aprender, instituindo sementes que podem descambar até mesmo em controle e perseguição”.

*Material publicado na Revista Ágora