Curador da exposição ‘Queermuseu’ acusa Santander Cultural de sequestro de obras

Galdêncio Fidélis participou de debate em evento promovido pelo curso de Direito da UFPR e reafirmou que exposiçao sofreu censura.





Travesti de lambada e deusa das águas, de Bia Leite, 2013. Foto: Reprodução.

O Santander Cultural cometeu ato de censura e sequestro de obras. Essa é a opinião do curador da exposição “Queermuseu – Cartografia da Diferença na Arte Brasileira”, que foi encerrada em 10 de setembro. Gaudêncio Fidélis esteve em Curitiba na última segunda-feira (20) para participar de um debate promovido pelo curso de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) intitulado “A Judicialização da Arte”. Na ocasião, ministrou uma fala sobre pontos que considera importantes acerca da polêmica e respondeu a perguntas da mesa debatedora e da plateia.

A exposição “Queermuseu” foi encerrada abruptamente após protestos iniciados pelo Movimento Brasil Livre (MBL) contra obras presentes na mostra. O MBL e outros que se juntaram à execração, apontaram apologia à zoofilia e à pedofilia, bem como desrespeito a símbolos religiosos. As críticas se deram sobretudo a telas como “Travesti da lambada e deusa das águas”, de Bia Leite, “Cruzando Jesus Cristo com a Deusa Schiva”, de Fernando Baril, e “Cena de interior II”, de Adriana Varejão.

Contudo, de acordo com o curador, que cita ainda parecer do Ministério Público, a exposição só poderia ser julgada sendo vista na sua totalidade. No seu entender, uma obra, individualmente, não pode representar toda a mostra. Além disso, Fidélis também é enfático na defesa das obras específicas, já que são telas que não fazem qualquer tipo de apologia ou mesmo a promoção de preconceitos, segundo seu julgamento. Para o curador, é de suma importância que a sociedade diferencie uma crítica, ou uma representação, da vida.

Curador da Queermuseu, Galdêncio Fidélis em evento na UFPR. Reprodução: Youtube.

Fidélis defende que o Santander Cultural promoveu censura já que impediu que a sociedade pudesse checar em loco as obras, encerrando a exposição um mês antes do previsto. Para ele, sobretudo após a polêmica levantada, era importante que a exposição estivesse disponível. Com o encerramento abrupto, foi promovido um ato contra a democracia e os direitos de escolha. “Foi um ato de censura. Um dos mais terríveis já consumados neste país”, enfatizou. “Nós precisamos estar alertas porque este é um momento de extrema gravidade. Nós não estamos tratando apenas do fechamento de uma exposição, mas estamos tratando de todas as liberdades que dizem respeito ao acesso ao conhecimento. Porque é isso que é uma exposição, antes de qualquer coisa.”

O curador ainda acusa o centro cultural de sequestro de obras, já que após o encerramento da exposição, a instituição permaneceu com todo o material por cerca de trinta dias. Dessa forma, o Santander Cultural teria impedido que as obras estivessem em exposição não somente em seu próprio espaço físico, mas também nos diversos lugares de onde são oriundas. Fidélis explicou que apesar de algumas das 263 peças serem de colecionadores particulares, muitas são propriedades de museus públicos. Muitas, inclusive, estavam expostas permanentemente antes de irem para a “Queermuseu”.

Gaudêncio Fidélis também diz ser importante pensar o papel das instituições no patrocínio da arte. Cita como exemplo outro caso de censura, dessa vez realizado pelo Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro contra a artista Márcia X. A celeuma remonta a 2006 quando a obra “Desenhando com terços” foi retirada da mostra “Erótica – Os sentidos na arte”. A tela em questão é composta por dois terços em formatos de pênis. Na época, o CCBB se desculpou dizendo que não quis afrontar a religião católica. Há muitos outros casos isolados como o que aconteceu também no Rio de Janeiro pelo Oi Futuro, quando em 2011 censurou parte de uma mostra dedicada à obra da fotógrafa Nan Goldin. Tratava-se da série de fotografias “Balada da Dependência Sexual” na qual a artista registrou amigos e desconhecidos em relações sexuais e usos de drogas a partir da década de 1970.

O curador da “Queermuseu” ainda afirma que outro crime foi cometido com o fechamento da exposição. Ele se refere à difamação que foi promovida contra os artistas. “Nesse processo de difamação, eles pegaram cinco obras da exposição e as caracterizaram de uma outra forma. Eles retiraram dessas obras a sua natureza artística, o seu significado e a sua história, ou seja, aquilo que elas são”, argumentou. De acordo com Fidélis, o MBL e os demais detratores não admitem o que essas obras significam. “Os artistas foram atingidos em todos os níveis de que podemos imaginar. Vou citar como exemplo a obra da Adriana Varejão, que é uma obra que trata da exploração, da dizimação e das mazelas da colonização brasileira… O MBL não aceita essa narrativa. Essa obra fala, por exemplo, da escravatura, que foi outro holocausto”.

“Cena de Interior II”, de Adriana Varejão. Reprodução: adrianavarejao.net

Após o encerramento da exposição “Queermuseu”, o país viu uma onda de ações civis e judiciais tentando proibir ou proibindo obras de serem levadas ao público. Dois outros casos se tornaram emblemáticos, como a proibição do espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” de ser realizado em Jundiaí e toda a polêmica acerca da performance “Bicho”. No caso da performance, o bailarino Wagner Schwartz permanecia nu enquanto o público o colocava em posições diferentes, uma referência direta à escultura de mesmo nome da artista Lygia Clark. Para os detratores, o problema se deu porque havia uma criança na performance quando realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Essa criança, acompanhada pela mãe, interagiu com o artista.

Na próxima quinta-feira (23), Gaudêncio Fidélis irá depor na  Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Maus-Tratos. A CPI pretende julgar justamente os casos de obras de arte que estariam pondo em risco crianças e adolescentes no país. Por mais que o curador tenha concordado em participar da sessão, há um pedido de condução coercitiva deferido inclusive pelo Supremo Tribunal Federal para o caso de sua desistência.

A reportagem procurou ouvir o Santander Cultural através de sua assessoria de imprensa. Por email, questionou sobre as acusações de censura e sequestro de obras, mas não obteve retorno.