Direito e vida das mulheres em risco: o debate reaceso pela PEC 181/2015

Descriminalizar o aborto não é o mesmo que dizer que eu ou você assim procederíamos necessariamente. A questão afeta à liberdade e à autodeterminação das mulheres.





Foto: Oruê Brasileiro

* Laura Maeda Nunes

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 181/2015 trouxe uma desagradável surpresa às mulheres, especialmente porque seu texto foi alterado para propor a inviolabilidade da vida desde a concepção.

O cenário é absolutamente preocupante e chama atenção por dois prismas. O primeiro deles é a questão da representatividade das mulheres na política, e o segundo diz respeito ao próprio debate sobre o aborto em si.

A Comissão Especial da Câmara dos Deputados, que votou o texto no dia 08 de novembro, possui 28 membros, dos quais apenas 03 (três) são mulheres. A alteração no texto da PEC 181/2015 foi feita por um homem, o deputado Tadeu Mudalen (DEM-SP), que declarou abertamente que “essa PEC trata sobre a vida e eu já resolvi inserir [a alteração na redação] para não deixar dúvida de que o direito à vida é desde a concepção. Quero deixar bem claro”. O texto foi aprovado com um único voto contrário, de uma mulher, deputada federal Érica Kokay (PT-DF). Além disso, o Plenário da Câmara dos Deputados e o Senado Federal, por onde ainda tramitará a PEC, também possuem esmagadora maioria de homens em sua composição.

Por construções históricas, infelizmente ainda naturalizadas em nossa sociedade, a representação política feminina no Brasil ainda é bastante reduzida (apenas 9% do Congresso Nacional), de modo que as maiores interessadas e atingidas pelas alterações que estão em pauta não têm sua autonomia, opinião e vontade consideradas. Por consequência, as dificuldades de promover alterações estruturais que dizem respeito à vida das mulheres são imensas, ao passo que a facilidade de se estabelecer retrocessos é absurda, chegando ao ponto de a tortura de gerir e parir o resultado da mais brutal violência ser preferível à interrupção da gravidez em caso de estupro.

A questão é bastante grave e exige debates de maior profundidade, a começar dentro dos próprios partidos políticos, que na prática lançam mão de mulheres como “laranjas”, apenas para cumprir a exigência legal de 30% das vagas indicadas para as eleições sem, contudo, fornecer verdadeiramente incentivos ou financiamentos que possibilitem sua eleição de fato.

Paralelamente a isso, a PEC 181/2015 também torna clara a ainda necessária desconstrução de julgamentos moralistas que circundam o aborto.

É preciso ter em mente que nenhuma conduta ou prática é, por si só, criminosa: só o é por decisão político-criminal que assim a caracteriza, sempre em consonância com condicionantes culturais e sociais. Nunca é demais lembrar que a criminalização do aborto também acompanha a lógica excludente e seletiva do Direito Penal: mulheres de classe média ou alta realizam aborto seguro, com seus médicos de confiança, longe de hospitais públicos e de quaisquer possibilidades de serem rotuladas como criminosas. Mulheres negras e pobres, por sua vez, estão mais vulneráveis ao aborto com risco e são as mais criminalizadas por essa prática. Significa dizer que a restrição legal ao aborto não obsta sua prática, mas tão somente reforça as desigualdades sociais já existentes.

Independentemente de posicionamentos políticos e morais, o aborto é uma prática comum e que diz respeito à saúde pública. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, ocorreram 123.312 internações de mulheres devido a complicações durante os procedimentos de interrupção da gravidez, apenas em 2016. Tem-se muito nítido que a criminalização do aborto não salva a vida em potencial de fetos e embriões, mas, antes disso, compromete a saúde e a vida de muitas mulheres – todas detentoras de autonomia, negligenciada pela maternidade compulsória que se está a instaurar.

Descriminalizar o aborto não é o mesmo que dizer que eu ou você assim procederíamos necessariamente. A questão afeta à liberdade e à autodeterminação das mulheres, e está muito além das nossas vontades e julgamentos. Deve-se abolir a falsa impressão de que a decisão da mulher por ter ou não um filho é fácil e leviana. Muito pelo contrário, o processo de escolha é difícil e doloroso e, também por isso, deve se dar autonomamente e sem condenação social.

A tentativa de alteração do texto constitucional, por meio da PEC 181/2015, se apresenta como uma revanche da bancada evangélica, derrotada em decisão histórica da Primeira Turma do STF em 2016, que considerou que aborto até o terceiro mês de gravidez não é crime, naquele caso específico. Após a frustração no Judiciário, o ataque vem agora na esfera Legislativa e, para o nosso azar, no contexto de retrocessos sociais que temos vivido na atual democracia golpeada. Não podemos, porém, nos silenciar.

Há espaço e é momento para resistência e muita luta.

               * Laura Maeda Nunes é advogada trabalhista e pesquisadora feminista