Indígenas Guarani denunciam ameaças, racismo e restrição à direitos

Reunião neste domingo (17) debateu questão envolvendo demarcação de terras no Paraná




FonteBruna Bandeira da Luz

Foto: Paulo Porto

Já passava das nove da manhã. Na casa de reza, o canto e balançar dos chocalhos eram acompanhados do som surdo produzido pelo golpear de uma taquara presa ao chão. Sobre uma mesa escolar uma garrafa servia como vaso de flor e ao lado um pequeno caixão branco laqueado indicava que aquele era um dia de lamento. “O bebê nasceu morto”, disseram os Guarani. Essas coisas acontecem, mas no caso da população indígena no Brasil, isso acontece mais. Embora seja difícil encontrar dados específicos sobre incidência de natimortos entre a população indígena no Brasil, um indício desta realidade pode ser observado através dos dados referentes à mortalidade infantil.

Um relatório, divulgado em outubro deste ano pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), aponta que em 2016, 735 crianças indígenas de até cinco anos perderam a vida, enquanto que em 2015 este número chegou a 599. Enquanto isso, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) apontam que a mortalidade infantil vem caindo consideravelmente com o passar dos anos. Só para se ter ideia, enquanto que em 1940 a taxa de mortalidade infantil era de 146,6 a cada mil nascidos, em 2015 esta taxa caiu para 13,8 a cada mil nascidos. Dados de 2008, do Fundo das Nações Unidas para a Infância, apontam que crianças indígenas têm 138% mais chances de morrer do que uma criança branca.

Mas o que justifica esta disparidade entre crianças indígenas e não indígenas? De acordo com o relatório do Cimi, entre as principais causas de morte de crianças indígenas estão: pneumonia, infecção intestinal, septicemia (agravamento de uma infecção) e desnutrição. Doenças que podem ser facilmente controladas mediante assistência básica em saúde. O fato é que para parte considerável da população indígena, ter assistência em saúde envolve grandes obstáculos.

Ernesto Veron, que vive em uma aldeia Guarani localizada na cidade de Terra Roxa, no Oeste do Paraná, conta que para ter atendimento médico é preciso encarar uma caminhada de aproximadamente uma hora e meia. Ele conta que a as crianças de sua aldeia costumam apresentar quadros frequentes de diarreia, febre e vômito. Segundo o índio, a água que chega à aldeia, fornecida pelo governo, além de insuficiente diante de dias de intenso calor, é bebida quente, já que eles não têm como refrigerá-la. Além disso, diante da falta de recipientes para transportar a água, os índios utilizam vasilhames de agrotóxicos descartados irregularmente em local próximo à aldeia. “É muito difícil para nós. Pedimos que o governo tome uma providência. O vasilhame que usamos para buscar água é a mesma do veneno, então quando uma mãe bebe a água deste vasilhame, a criança, do ventre da mãe, também está bebendo água envenenada”, disse.

Conflito em Guaíra

Ocorre que em um lugar específico do Brasil, o acesso à saúde da população indígena, que já é precário, ficou ainda pior. Justamente onde fica a casa de reza onde o bebê foi velado na manhã do dia 17 de dezembro deste ano, um conflito entre proprietários de terra e índios Guarani faz com que os indígenas tenham receio de ir até a cidade, onde ficam os estabelecimentos de saúde. A situação se passa em Guaíra, cidade fronteiriça, também localizada no Oeste do Paraná. De acordo com o Cacique da Tekoha Y’hovy, Ilson Soares, os índios que vão até a cidade relatam situações que envolvem tentativas de atropelamento e comerciantes que se negam a vender. “Internamente o clima está tranquilo, porque temos nossa própria organização e orientação que recebemos dos nossos líderes religiosos. Agora, o clima continua bastante tenso na cidade, o preconceito está visível”, afirma o cacique.

Tudo isso acontece devido a um processo de demarcação de terras, cuja portaria que determina que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) faça um levantamento da questão fundiária local, publicado em novembro deste ano. Diante dos fatos, Organização Nacional de Garantia do Direito de Propriedade (ONGDIP), passou a orientar a população local a não atender e nem assinar qualquer documento apresentado pelos trabalhadores da FUNAI. Depois disso, um falso mapa, que apontava que a demarcação de terras em Guaíra e Terra Roxa entregaria aos índios metade da cidade, passou a ser divulgado. A falsa notícia repercutiu como verdade em veículos de comunicação da região, colocando inclusive a população urbana contra os índios. “Eles falam que os índios vão tomar Guaíra e esse discurso faz com que a população, que não tem nada a ver com a briga, se volte contra os indígenas. É uma situação difícil, mas temos que conviver com isso, porque moramos muito próximo à cidade. Então a gente vê a população colocando faixas, adesivos nos carros, contra a demarcação”, contou Ilson.

O resultado destas ações foi uma sequência de atos de ódio contra a população indígena local. Nas redes sociais, comentários racistas e até mesmo ameaças de morte foram publicados por alguns moradores da cidade. As ameaças foram até talhadas em uma árvore que fica na entrada da aldeia onde Ilson é cacique. Recentemente parte da população tentou impedir a chegada de kits de moradia à aldeia, achando que a madeira seria utilizada na demarcação de terras. Segundo o cacique, o motorista do caminhão contou que vinha sendo perseguido por dois carros desde Marechal Cândido Rondon (cidade que fica há 68 quilômetros de Guaíra). Ao parar em um posto de combustível, localizado na entrada da cidade de Guaíra, o caminhão foi cercado por diversos carros e o motorista acuado, foi surpreendido por uma série de indagações e ameaças (como a de incendiar o caminhão, por exemplo). O caminhão só chegou à aldeia com o apoio da Polícia Federal. Dois dias depois uma manifestação contra a demarcação de terras foi realizada na cidade, reunindo aproximadamente mil pessoas. Ilson conta que neste dia proprietários fecharam seus estabelecimentos comerciais e obrigaram seus funcionários a participar da mobilização.

Decisão judicial

Como o motorista informou que havia mais dez cargas de kits moradia para chegar, a ONGDIP resolveu apelar para a via judicial para tentar impedir a chegada dos kits, que na verdade tem como objetivo substituir madeiras agredidas pelo tempo, garantindo dignidade à população local. No entanto, decisão judicial publicada no dia 16 de dezembro deste ano, negou o pedido dos proprietários de terra em garantir “medida protetiva, através de decisão proferida por Vossa Excelência, no sentido de intimar os requeridos, via oficial de justiça, para que se abstenham de realizar construções de novas casas/barracos na área objeto de litígio, eis que tais procedimentos estimulam as invasões e, por consequência, podendo acarretar, inclusive, atos de violência entre população/proprietários e índios”.

De acordo com a decisão, assinada pela juíza federal substituta Mariana Camargo Condessa, “não há necessidade de intervenção judicial para impedir substituição das moradias”, visto que “não há prejuízo aos proprietários, já que as casas em questão são justamente kits de moradia móveis, as quais podem ser facilmente removidas e deslocadas para outras localidades”. A juíza ainda destacou que “a substituição das precárias habitações de lona e tapume por instalações de madeira e de natureza removível é medida apta e proporcional para a promoção dessa proteção mínima almejada judicialmente, porquanto representa uma justa composição entre os interesses dos proprietários/possuidores e dos indígenas. Com efeito, por certo não é interesse de nenhum dos membros desta comunidade que crianças e idosos submetam-se a condições degradantes de vida, ou que, pela precariedade das instalações, disseminem-se doenças e infecções nesta região”.

Lideranças Guarani reuniram-se no fim de semana. Foto: Paulo Porto

Encontro de lideranças

Para discutir o momento de conflito o Cimi propôs uma reunião entre as lideranças indígenas da região, na Tekoha Y’hovy. A reunião, que foi realizada na escola da aldeia, teve início logo que o velório do bebê teve fim e se prolongou até o período da tarde, onde as lideranças redigiram e assinaram um documento (confira a íntegra). No texto, os indígenas repudiam os atos de ódio ao povo indígena e pedem ao Ministério Público Federal que aja no sentido de garantir a segurança e demais direitos do povo guarani, bem como no de fazer com que a Funai acelere o processo de demarcação, “pela importância da terra para garantir vida cotidiana da comunidade, que tem como base dança, cantos, organização social própria e religiosidade; pela preservação da natureza que para nós é um ser vivo e a terra é nossa mãe e; pelo fato de que a demora no processo de demarcação nos coloca em situação de maior vulnerabilidade”.