“Faço charges políticas porque o momento é esse. Diante de um golpe de estado, falar de outra coisa é morar numa Torre de Marfim. Minha charge é uma forma de confrontar o discurso direitista que foi martelado diariamente na mídia nos últimos anos”. A afirmação é do chargista Jota Camelo, que tem ganhado destaque na mídia alternativa e nas mídias sociais ao denunciar o Golpe de 2016, a atuação do Judiciário neste processo e a ascensão de movimentos da extrema-direita no país.

Suas charges estão presentes em veículos alternativos, blogs progressistas e sites de esquerda, além de serem compartilhadas diariamente pelos milhares de seguidores de sua página pessoal no Facebook. Apesar do sucesso, Jota é um anônimo. Em seu blog e seu perfil na rede social (com mais de 10 mil seguidores) não há fotos e a única informação disponível é que mora em São Paulo. A imagem do perfil é uma charge de autoria própria com o desenho de um guerrilheiro cubano.

Declaradamente ateu e marxista, o chargista criou personagens que se tornaram sucesso na Internet; como a dupla “Coxão e Coxinha”, uma série criada para o jornal Causa Operária Online, ligado ao Partido da Causa Operária (PCO). As charges do juiz Sergio Moro também são destaque em compartilhamentos.

Em entrevista ao Porém.net, Jota Camelo fala desta opção em manter-se no “anonimato”, de sua militância e da repercussão de seu trabalho na Internet.

Confira a entrevista na íntegra.

Porém.net: Na sua página não há fotos ou informações pessoais. Qual a razão deste “anonimato”?

Jota Camelo: Conheço alguns ativistas de esquerda e ativistas ateus que atuam na Internet no total anonimato, e todos dizem a mesma coisa: o ramo de trabalho em que atuam não lhes permite mostrar o rosto. As retaliações no ambiente de trabalho são frequentes. Muitas empresas monitoram seus empregados na rede, principalmente no Facebook, e qualquer “deslize”, é motivo para advertência informal e até demissão. Já conheci gente que foi demitida por expressar posições políticas e anti-religiosas no Facebook. E isso é muito difícil de se provar num processo trabalhista. Por isso, muitos ativistas possuem uma página convencional onde publicam apenas amenidades inócuas, e outra página anônima onde podem realmente expressar suas ideias. Esse é o meu caso.

Porém.net: Quando começou a desenhar e quando decidiu ter esse viés militante e criar o blog com charges políticas e sobre religião?

Jota Camelo: Meus pais me colocaram numa escola de artes plásticas quando eu ainda era muito criança, antes mesmo da idade escolar. Cursei essa escola até o final da adolescência, e lá aprendi as técnicas clássicas do desenho artístico e da pintura. Comecei a fazer charges muito recentemente quando comecei a militar na ATEA (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos). Minhas primeiras charges eram muito toscas, mas com o tempo fui me adaptando ao desenho no computador. Comecei a fazer charges políticas durante o golpe de 2016. Minha militância política estava adormecida desde 2003, mas em 2016 voltou com força total, com muita indignação e raiva.

Porém.net: E quais são suas referências?

Jota Camelo: Sempre gostei de charges e acompanhei o desenvolvimento desse tipo de arte sem nunca ter feito um desenho cômico. A charge funciona como uma crônica desenhada que pode ter (ou não ter) o remate de uma piada. Ela não é feita para ilustrar um texto (isso seria uma ilustração), é feita para expressar ou mostrar uma certa verdade ainda não percebida, ou uma obviedade encoberta. Por isso, as melhores charges são as que nos revelam o óbvio, aquilo que todos conhecemos, mas que nunca foi apresentado de maneira simples e clara. Para mim, tudo se divide em estilo e conteúdo. Muitos chargistas têm um desenho maravilhoso, mas uma temática e uma orientação política que deixam a desejar, pois nem todo chargista entende de política. Outros têm uma boa temática e orientação política, mas o desenho não me agrada. O único que possui essas duas qualidades, desenho maravilhoso e perfeito posicionamento político, é o Angeli, na minha opinião.

Porém.net: Você tem mais de 10 mil seguidores do Facebook, suas charges tem destaque em vários veículos da mídia alternativa, além de milhares de compartilhamentos. Esperava tanta repercussão?

Jota Camelo: O que explica isso é o momento político extremamente polarizado. Aquele que ignorar o momento ou tentar contemporizar vai ficar para trás. O momento exige uma posição política muito clara e muito bem fundamentada. Normalmente, em situações extremas, e um golpe de estado é uma delas, as pessoas que não “entendem de política” ficam confusas. E “entender de política” não significa ler jornais ou seguir os noticiários. Significa ter uma base teórica sobre o assunto (no meu caso, o marxismo). Só as pessoas com essa base teórica conseguiram perceber o que estava acontecendo: um golpe de estado orquestrado pelo imperialismo, por uma parte da burguesia nacional, envolvendo um grande número de instituições públicas e privadas, e a imposição de uma política neoliberal de terra arrasada. Muitos, até mesmo na esquerda, se comportaram como uma “Maria-vai-com-as-outras”, confusos diante da massacrante doutrinação diária da imprensa golpista, e realmente acreditaram que tudo não passava de “combate à corrupção”. Qualquer um que tenha um pouquinho de conhecimento de como os golpes de estado ocorrem, sabe que o tal “combate à corrupção” é o truque mais antigo do manual. Talvez seja essa a explicação: as pessoas que primeiro perceberam o que estava acontecendo se tornaram como que “guias” para as outras, mesmo que, no primeiro momento, sofressem uma enorme quantidade de críticas.

Porém.net: Você é de uma geração que faz questão de mostrar que o artista não está apartado do processo político-social. É isso que pretende com seus desenhos?

Jota Camelo: Desde minha infância, fui educado para apreciar o modernismo. E o modernismo foi um movimento artístico (pintura, poesia, literatura, etc.) muito politizado e engajado. O desinteresse blasé dos pós-modernistas pela política nunca me interessou e até hoje me entedia, sem falar no obscurantismo mascarado de intelectualismo tão comum entre os pós-modernistas. Talvez seja por isso que me interesso por qualquer tipo de arte engajada e participante da vida política e social. Faço charges políticas porque o momento é esse. Diante de um golpe de estado, falar de outra coisa é morar numa Torre de Marfim. Minhas charges são uma forma de confrontar o discurso direitista que foi martelado diariamente na mídia nos últimos anos.

Porém.net: Você tem denunciado o golpe e criou personagens como a dupla “Coxão e Coxinha”. Como surgiu a ideia da série?

Jota Camelo: Durante o golpe, eu conheci o pessoal do PCO, e descobri que tenho uma total identificação ideológica com eles. Depois de um certo tempo, eles me convidaram para fazer uma série no Jornal da Causa Operária Online e me deram o título: Coxão e Coxinha. Aceitei a ideia imediatamente e criei os dois personagens. Mesmo que eu tenha apoiado o PT desde sua criação, hoje o PCO é o meu partido, considero-me um membro, e gostaria de poder colaborar mais com eles, mas me falta tempo.

Porém.net: Sergio Moro também é constantemente retratado em suas charges. Já recebeu algum processo ou intimação relacionados ao juiz?

Jota Camelo: Não. A encomenda dele é outra, é acabar politicamente com o maior líder popular do Brasil: o Lula. Ele deve estar se concentrando apenas nessa tarefa.

Porém.net: Alguma charge já foi retirada do ar pelo Facebook ou até mesmo sua página recebeu alguma notificação da rede?

Jota Camelo: Não. Eu li com muita atenção as diretrizes do Facebook. Acho que o fato dos golpistas não conseguirem controlar o Facebook e o Twitter deve angustiá-los profundamente. Mas, não tenho dúvidas de que existem planos para controlar a Internet no Brasil. E a maneira mais simples de fazer isso é torná-la muito cara, torná-la apenas acessível à classe média. A Internet está se tornando por demais poderosa para deixá-la nas mãos do povo. Como a burguesia brasileira não consegue controlá-la, irá torná-la inacessível para a maioria.

Porém.net: Neste momento de propagação do discurso do ódio, tem recebido muitas ameaças ou agressões pelo seu posicionamento?

Jota Camelo: Já perdi a conta das ameaças e xingamentos. Mas, não ligo pra isso e nem me preocupo. Ameaças de Internet nunca se concretizam. Mas, podemos aprender uma importante lição com essa tal “propagação do discurso de ódio”. O ódio de classes sempre existiu no Brasil. Mas, pela primeira vez esse ódio pelos pobres e pelos trabalhadores mais humildes eclodiu, e foi alardeado e televisionado nas manifestações coxinhas. Aquilo que só era dito nas conversas entre amigos, hoje já tomou conta dos cartazes e dos discursos nas redes sociais. A Globo e a imprensa golpista deu ao fascista acanhado uma voz, uma plataforma política, um orgulho. O Brasil sempre foi assim: racista, violento e com uma intensa luta de classes. A única diferença é que tudo isso agora veio à tona e está assustando de tão feio que é.

Porém.net: O quanto a Internet e as redes tem servido para furar esse cerco midiático e desnudar essa mídia que esteve a serviço do golpe?

Jota Camelo: Isso não acontece apenas no Brasil. No mundo todo, os principais meios de comunicação de massa não são mais do que meros porta-vozes da burguesia. No entanto, no Brasil, o domínio da Globo é algo que não acontece em lugar nenhum do planeta. A Globo tem um domínio sobre a opinião pública que nenhuma rede de televisão no mundo possui. Por que a CUT (que representa milhões de trabalhadores) não tem uma TV, e uma pequena família de burgueses flatulentos tem? Para aqueles que se horrorizam com a corrupção, sugiro que pensem na gigantesca rede de corrupção e troca de favores que existe por detrás do sistema de concessões no Brasil. E nenhum governo (nem mesmo o PT) teve a coragem de acabar com essa imunda rede de privilégios. A Internet está aos poucos crescendo e se apresentando como uma poderosa oposição à mídia corporativa. Notem que, pela primeira vez, um presidente americano consegue se eleger utilizando a Internet como meio de comunicação direta com seu público, mesmo com toda a poderosíssima mídia tradicional contra ele. Mas, a Internet tem um porém: ela ainda atinge uma camada muito pequena da população brasileira. E com o empobrecimento da população que certamente virá nessa nova fase neoliberal, essa camada só tende a estreitar.

Porém.net: Muito se fala sobre o limite de humor. Há quem diga que a arte e o humor não devem ter limites, outros artistas estabelecem os seus pessoais. Como avalia?

Jota Camelo: Embora muita gente mal informada diga o contrário, são os marxistas os verdadeiros democratas. Como marxista, acho que a liberdade de expressão tem que ser plena. Ninguém pode ser punido por ter uma opinião, seja ela qual for. O que eu posso dizer sobre os “limites do humor” é que os brasileiros estão tão acostumados a viver sem liberdade que se chocam quando ela é exercida nas redes sociais. As pessoas precisam se conscientizar disso: dentro de um Estado burguês, a lei nunca (repito: nunca!) é para todos. Apoiar leis que punam ou coíbam a liberdade de expressão é dar um tiro no próprio pé. É como dar munição ao seu opressor.