Cineasta Fernando Birri deixa legado gigantesco ao cinema latino-americano

Autor de obras célebres como "Tire-Die", é considerado o pai dos cinemas novos e autor do mais bonito juramento que se tem notícia





Fernando Birri, cineasta que é considerado o pai dos cinemas novos na América Latina (movimento da década de 1960), morreu na semana passada, no dia 27 de dezembro, aos 92 anos de idade. O diretor, que foi também escritor e poeta, deixa um legado enorme para o cinema e as artes. Seu filme mais celebrado é “Tire-Die”, um documentário de 33 minutos sobre crianças que diariamente pediam esmolas a passageiros de uma linha de trem na cidade de Santa Fé, na Argentina. O título faz referência ao pedido que essas crianças faziam aos passageiros. “Atire dez”, elas diziam repetidamente no filme. Atire dez centavos, entenda-se. O média-metragem é de 1960 e foi uma enorme influência para cineastas de todo o mundo.

A produção de Birri não é pequena. Entre suas obras destacam-se “La Primera Fundacion de Buenos Aires” (1959), “Los Inundados” (1961), “La Pampa Gringa” (1962), “Org” (1967), “Rafael Alberti – Retrato del Poeta” (1983), “Nicarágua” (1984), “Mi Hijo el Che” (1985), “Un Señor Muy Viejo con Unas Alas Enormes” (1988) e “El Siglo del Viento” (1999).

Com a morte de Fernando Birri, muitos lembraram acerca do juramento que estudantes de cinema da Escola de San Antonio de los Baños proferem no final do curso. Acontece que o cineasta foi um dos fundadores da instituição de ensino cubana, escola internacional que é considerada como das melhores do mudo. Foi o próprio Birri quem escreveu o juramento, um poema em por si só e uma espécie de manifesto artístico e social.

Abaixo segue a íntegra do texto, com tradução da jornalista Mariana Sanchez.

Juramento Athanasiano diante da Lanterna Mágica

Se um engenheiro constrói mal uma ponte, esta ponte cai.

Se um médico cura mal uma doença, este doente morre.

Se um cineasta, um videasta, um teleasta fazem mal um filme, um vídeo, um episódio de televisão, aparentemente não acontece nada, ninguém morre.

Tibetanos, cabalistas, Jean Cocteau repetiram: “Desconfiai dos espelhos”. E eu vos digo: desconfiai da impunidade das imagens. Pois o que são estas imagens audiovisuais senão o mais efêmero dos espelhos, o mais perigoso deles, um espelho capaz de refletir os sonhos, capaz de evocar no branco de uma tela o mundo universal e fazê-lo desaparecer novamente em um nada branco sem se dilacerar?

Eu vos peço olhos e orelhas.

Imagens também podem matar, desmoronando arquiteturas secretas da imaginação, sepultando neurônios de consciência sob escombros de insensibilidade, venalidade, mediocridade.

Conscientes de sua responsabilidade para com o corpo físico do homem, os médicos, há centenas de anos, em um momento como este fazem seu juramento hipocrático de iniciação, em nome do salutar proto-médico Hipócrates. Eu lhes proponho nesta noite, para a saúde da imaginação audiovisual, este novo juramento, em nome do padre Athanasius Kircher, século XVII, inventor da Lanterna Mágica (não o façam em voz alta, basta que cada um o faça ouvindo a si próprio).

Jurais que não filmareis um só fotograma que não seja como o pão fresco, que não gravareis um só milímetro de fita magnética que não seja como a água limpa?

Jurais que não desviareis vossos olhos, que não tapareis vossos ouvidos diante do real maravilhoso e do real terrível da terra da América Latina e do Caribe, África e Ásia, do qual sois feito, e do qual sois inevitável expressão?

Jurais que sereis fiel a um sentimento irrenunciável de libertação da justiça, verdade, beleza, que não retrocedereis diante dos fantasmas da angústia, da solidão, da loucura, e sereis fiel antes de tudo a vossa voz interior?

Se assim não o fizerdes, que o tigre e a águia devorem o fígado de vossos sonhos, que a serpente se enrosque no chassi de vossa câmera, que exércitos de vaga-lumes chispem curtos-circuitos de interferências em vossas filmadoras eletrônicas.

Se assim o fizerdes, como nós confiamos, que o colibri vos proteja com o delicado escudo de um arco-íris tão longo quanto a vida e além, em vossas obras.