Assédio e trabalho: Time’s Up?

Os discursos das estrelas são legítimos e é ótimo que venham à tona. É preciso, porém, observar a realidade vivida pela maioria das trabalhadoras de nosso país





* Laura Maeda Nunes

Na última semana, ganhou repercussão mundial a manifestação de diversas famosas no evento Globo de Ouro, com o objetivo central de denunciar o assédio sexual existente nos bastidores de Hollywood. Além dos discursos nesse sentido, em especial o da apresentadora Oprah Winfrey, as famosas se vestiram de preto, para representar simbolicamente que “time’s up” para o silêncio das mulheres diante do assédio, que esta era morreu e não tem volta.

Não demorou para surgirem reações contrárias.

Na França, um grupo de 100 mulheres, encabeçado pela atriz Catherine Deneuve, assinaram carta aberta no jornal Le Monde. Em apertada síntese, a crítica foi de que ações como essas incentivam ódio aos homens e à sexualidade, bem como que “estupro é crime, mas tentar seduzir alguém, mesmo de forma insistente ou desajeitada, não é” e que as denúncias a esses comportamentos apenas servem aos puritanos.

Danuza Leão, do jornal O Globo, registrou sua torcida para que a “moda de denúncia contra assédio sexual não chegue no Brasil”. Afirmou que as famosas manifestantes do Globo de Ouro foram “muito pouco paqueradas”, encerrando o texto com: “é ótimo passar em frente a uma obra e receber um elogio. Sou desse tempo. Acho que toda mulher deveria ser assediada pelo menos três vezes na semana para ser feliz”.

O debate é recheado de argumentos que podem ser analisados por recortes geracionais, raciais, de classe e até geográficos, que têm em seu cerne o trabalho.

No Brasil, o assédio sexual envolve o ambiente de trabalho e é tipificado no Código Penal como “constranger alguém com o intuito de obter vantagem sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função” (artigo 216-A). As críticas de Danuza Leão parecem ignorar que as denúncias de assédio sexual das estadunidenses envolvem o abuso do poder hierárquico de homens, produtores e diretores, para coagir trabalhadoras, como em uma negociação de vantagens sexuais em troca de manutenção no emprego, ascensão salarial ou outros benefícios.

Uma piscada de olhos, mordida nos lábios ou assobios ao passar por uma obra incomodam e constrangem, pois pressupõem o corpo da mulher como à disposição do homem. Esses comportamentos são sem dúvida reprováveis e graves, na medida em que reforçam a naturalização do machismo que promove a manutenção de estupros, violência doméstica e feminicídio. Se analisados isoladamente, como fez Danuza Leão, não coagem, forçam ou limitam a resposta por parte da mulher – diferentemente do que ocorre no ambiente de trabalho.

É claro que o machismo e o assédio não se manifestam apenas nas relações laborais, mas me parece ter sido esse o enfoque dado pelas denúncias realizadas à Harvey Weinstein, sendo impossível qualquer análise que dissocie machismo de trabalho.

O trabalho pode ser considerado uma das mais evidentes maneiras de controle e reafirmação da hierarquia de gênero. É certo que muito se avançou e, hoje, mais mulheres almejam uma carreira profissional em detrimento das funções de esposa e mãe se compararmos com tempos pretéritos. O que se ressalta, porém, é que apesar da crescente inserção das mulheres no mercado de trabalho, ainda persistem desigualdades nessas relações profissionais. Salários menores, dificuldade para promoção na carreira e assédio sexual são problemas que devem ser tratados com a devida seriedade. O acesso das mulheres ao trabalho assalariado jamais suprimiu o abismo existente entre homens e mulheres em termos de igualdade. E se as estrelas hollywoodianas enfrentam problemas dessa estirpe, o cenário é infinitamente pior para a grande maioria das trabalhadoras brasileiras, que estão longe de possuírem a visibilidade e o poder de Oprah ou de Deneuve.

As mulheres ainda se concentram majoritariamente em setores que reproduzem o espaço doméstico ou naqueles correspondentes aos papeis sociais femininos, como os de cuidado, de limpeza e alimentação, nos quais há predominância de tarefas manuais ou menos complexas, de menor prestígio social, a que Souza-Lobo denomina “guetos ocupacionais” predominantemente femininos. Essa segregação ocupacional por sexo, com forte concentração em determinados ramos e setores, pode ser visualizada de maneira horizontal (um conjunto reduzido de ocupações tradicionalmente definidas como femininas) e vertical (menor salário, notoriedade e poder de decisão em uma mesma ocupação). Se há exploração do empregado pelo empregador no mundo do trabalho capitalista, ela é ainda mais dura em relação às empregadas mulheres, e mais ainda em relação às mulheres negras e pobres.

É inegável que o mundo e a economia são globalizados, mas seria um erro grosseiro importar a discussão entre o “puritanismo feminista” estadunidense e a “liberdade sexual” francesa sem qualquer filtro com a realidade brasileira. Ainda que criticável em razão do aspecto liberal, não foi no Brasil que soutiens foram incendiados em maio de 1968. Aqui, em 2018, o segundo colocado nas pesquisas para o maior cargo político nacional já declarou em alto e bom som ser plenamente justificável que mulheres tenham salário menor do que os homens porque engravidam.

Especificamente quanto à crítica francesa às famosas do Globo de Ouro, deve-se reconhecer que não são de todo repugnantes, especialmente quando pontuam os interesses de mercado por detrás dos discursos de mulheres empoderadas, debate que já teve grande repercussão com a figura da cantora negra Beyoncè, inclusive no que toca à importância da representatividade. Pecam, entretanto, ao defenderem a liberdade sexual sem se aperceberem que estão reproduzindo, concomitantemente, o caráter predatório da “sedução” machista, naturalizando papeis masculinos de caçador e femininos de presa. Ainda, mostram-se, ao menos, desleais ao utilizar a expressão “caça às bruxas” contra assediadores poderosos. Denunciar o assédio sexual não é inibir a liberdade sexual dos homens, tampouco das mulheres, mas explicitar relações de abuso mascarados de liberdade sexual. O manifesto aparentemente parte do falso pressuposto de que as mulheres têm plenos direitos em relação a seus corpos e que são respeitadas quando dizem não. Novamente, não é essa a realidade que vivenciamos, e dessa vez não apenas no Brasil. Isso vale para ambientes descontraídos, como nas festas carnavalescas, e também para ambientes profissionais.

Não se olvide que o trabalho assalariado formal é necessário à independência financeira das mulheres, inclusive auxiliando-as a porventura saírem de situações de violência doméstica já que, muitas vezes, o companheiro é o provedor da família. Na busca por essa autonomia econômica, porém, muito ainda se esbarra no machismo e no poder de homens inseridos no mesmo ambiente de trabalho, seja na administração pública ou na iniciativa privada, seja na menos lucrativa ou na mais bilionária empresa. Se apenas agora bem-sucedidas atrizes trouxeram à tona os abusos tolerados para manterem seus papeis, quantas histórias ainda são silenciadas pelas condições de trabalho no Brasil? Não se trata de genericamente culpabilizar o homem e vitimizar a mulher, apenas não se pode ignorar que situações de abuso de poder de homens em face de mulheres ainda são frequentes nas relações trabalhistas e as mulheres possuem discernimento para distinguir uma paquera de um abuso, em qualquer meio.

Toda movimentação de tomada de consciência coletiva gera críticas, que são absolutamente necessárias para a construção de caminhos para avançar. Nunca o feminismo esteve tão em pauta. Os discursos das estrelas são legítimos e é ótimo que venham à tona. É preciso, porém, observar a realidade vivida pela maioria das trabalhadoras de nosso país que ainda têm suas vozes silenciadas, assim como é necessário dar mais ouvidos ao que têm a dizer os movimentos feministas orgânicos, como a Marcha Mundial das Mulheres e a Marcha das Vadias, por exemplo.

* Laura Maeda Nunes é advogada trabalhista e pesquisadora feminista