Temilayo, nascida e criada no morro São José, em Porto Alegre. Foto: Leandro Taques

O fim do dia se debruça às margens do Rio Guaíba. Próximo ao acampamento da Resistência Democrática, erguido pela Frente Brasil Popular, o trânsito de carros e de pessoas que estão a se exercitar é interrompido bruscamente. Um forte batuque se aproxima, alterando o batimento cardíaco daqueles que estão estacionados ao redor do Anfiteatro Pôr do Sol. Em instantes, negros e negras ocupam toda avenida no ritmo de quem busca por justiça e igualdade social. De pés descalços, com roupas brancas e ornamentos, marcham livremente, mas protestando contra as correntes invisíveis que ainda amarram a sociedade brasileira.

Esta é a 10a Marcha pela Vida e Liberdade Religiosa que se soma ao grito daqueles que lutam contra injustiça e perseguição. Queixa com herança e tradição. Segundo o IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), em estudo sobre o “Desenvolvimento humano para além das médias”, Porto Alegre registra a maior diferença do país na desagregação dos dados entre brancos e negros. Na capital gaúcha, “o IDHM da população negra foi 18,2% inferior ao IDHM da população branca. Na RM de Porto Alegre, o índice que mede o subíndice de frequência escolar dos brancos era 22,2% maior do que da população negra, 0,687 e 0,562, respectivamente”, revela a pesquisa de maio de 2017.

Temilayo, nascida e criada no morro São José, em Porto Alegre, é uma das pessoas que sofrem, mas resistem a séculos de escravidão e falta de oportunidades para a comunidade afrodescendente brasileira. Enquanto ela dança e espanta o racismo, traz consigo as origens e marcas de seu povo com fortes raízes no Rio Grande do Sul. Segundo a Federação das Comunidades Quilombolas, existem mais de 130 comunidades remanescentes de quilombos no estado.

“Existiram, por exemplo, quilombos em Rincão do Ipané, Rincão dos Fernandes, Palma (Uruguaiana), Quadra da Palma (Encruzilhada do Sul), Chácara das Rosas (Canoas), Linha Fão (Arroio do Tigre), Rincão dos Caixões (Jacuizinho), Limoeiro (Palmares do Sul), Turuçu, São Lourenço do Sul e vários outros”, lista o site Brasil Turismo.

Envolvente, sorridente e valente, Temilayo explica o motivo do protesto ocorrido em 23 de janeiro de 2018. Para ela, a sociedade é “intolerante e racista. A gente sofre a vida toda. Nas ruas, na escola. Meus filhos e meus netos, sofrem algum tipo de preconceito ou racismo por eles falarem qual é a religião deles. Na escola deles, se não querem assistir o ensino religioso, que agora é obrigado, eles sofrem censura até dos professores”.

O Rio Grande do Sul aplica uma norma da Constituição Federal que define a possibilidade do ensino religioso de forma interconfessional e que abrange todas as religiões. Contudo, a regra seguida pela Secretaria Estadual da Educação (Seduc) tem seus buracos. Um desses é justamente a possibilidade de poder escolher se cursa ou não a disciplina. “As instituições não dispõem de recursos para ofertar outra atividade aos alunos que não quiserem acompanhar as aulas de religião”, informa a reportagem da Gaúcha ZH.

Para Temilayo, por outro lado, o cenário se agrava principalmente quando movimentos como “Escola Sem Partido” tentam doutrinar as crianças, numa espécie de cruzadas do século XXI. “Esse movimento veio para isso. Para impor a religião evangélica e eles tomarem conta do espaço escolar, propagando sua forma de enxergar o mundo. A intolerância não vem da igreja Católica, mas desses políticos conservadores apoiados pela igreja evangélica”, comparou.

A 10a Marcha pela Vida e Liberdade Religiosa não se encontrou por acaso com o acampamento da resistência. Ao parar em frente ao Anfiteatro, enquanto o dia findava, o movimento previu as trevas que podem se abater sobre o país caso a perseguição a Lula e aos movimentos sociais se amplie. “Somos de matriz africana e estamos apoiando Lula porque ele foi o único governo que olhou para nós e deu oportunidade do nosso povo fazer uma universidade, que o pobre pode adquirir internet, carro, entre outros”, se posicionou Temilayo.

Durante o governo do ex-presidente Lula foi introduzida a política de cotas raciais. A decisão sempre gerou muita polêmica entre as classes média alta e rica, “donas” dessas vagas, uma vez que tinham mais acesso à educação. Um dos argumentos era de que a introdução de negros menos escolarizados diminuiria a qualidade do ensino. Dez anos após, no entanto, provou-se exatamente o contrário – a evasão caiu e a qualidade do ensino cresceu.

“Deu tão certo que virou lei, sancionada em 2012 pela presidenta Dilma. A Lei de Cotas Sociais destina 50% das vagas nas universidades federais para quem cursou integralmente o ensino médio em escolas públicas. Essas vagas serão distribuídas entre negros, pardos e indígenas, de acordo com a composição étnica da população em cada estado”, registra o Instituto Lula.

Com o golpe, esse modelo de estado distribuidor de renda e de direitos está abalado, na visão da liderança afrodescendente. “Agora, eles não querem que o povo melhore de vida. O que acontece com Temer e essa corja? Com eles, o pobre não pode mais andar de avião. Eu só fui andar com 50 anos, no governo de Lula”. Temilayo tem razão. No governo de Temer, diferente do que pregava Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) ao permitir que as companhias aéreas cobrassem separadamente pela bagagem, o preço da passagem área subiu. Segundo a Fundação Getúlio Vargas, a alta decolou para 35,9% e os pobres não conseguiram embarcar.

Esse é apenas um dos recuos sociais que o Brasil deu nos últimos anos. Sendo que a comunidade negra foi uma das mais atingidas. Desde que assumiu e para se manter no poder, Michel Temer acabou com políticas de igualdade racial. “Dos R$ 22 milhões autorizados pelo Congresso Nacional para o orçamento de políticas de promoção da igualdade racial em 2017, o governo de Michel Temer executou, até o último dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, apenas R$ 1,4 milhão, ou 6% do recurso. Com o Disque Igualdade Racial, que atende vítimas de racismo, por exemplo, nenhum centavo foi gasto”, revela a Rede Brasil Atual.

A obscuridade chegou, inclusive, no combate ao trabalho escravo. Temer tentou flexibilizar a fiscalização para atender pedido, principalmente, de ruralistas e empresários conservadores. Mas teve que recuar após forte pressão da sociedade e da  OIT (Organização Internacional do Trabalho). Para a entidade, “seria lamentável ver o país recuar com relação aos instrumentos já estabelecidos, sem substitui-los ou complementá-los por outros que tenham o objetivo de trazer ainda mais proteção aos trabalhadores e trabalhadoras”.

Mas não dá para esperar pela caridade de quem tomou o poder, na avaliação de Temilayo. Para ela, é necessário que as pessoas se tornem sujeitas de sua história, que afugentem todos aqueles que fazem da desigualdade uma fonte de seus privilégios. E a resistência começa no berço. “A gente vem de um terreiro em que trabalhamos a cidadania, trabalhamos a cabeça das crianças, mostrando que eles têm que estudar porque somente a educação pode modificar a vida deles. Sem estudo, eles vão passar o que seus pais e avós passaram”, ensina.