Truco!





Foto: Gibran Mendes

Por Wilson Ramos Filho (Xixo)*

Sob todos os aspectos a Reforma da Previdência é inaceitável. Exceto por um. Por ele talvez seja mesmo desejável.

Antes de começar meu linchamento, convido-os a uma reflexão.

– Deram o Golpe. Afastaram a Presidenta sem que qualquer crime tenha sido praticado. Simplesmente colocaram no lugar um traidor;
– Implantaram o programa (Aécio) que havia sido derrotado democraticamente nas urnas;
– Congelaram os “gastos” em saúde, educação, políticas públicas compensatórias por 20 anos;
– Desconstruiram os programas sociais para pobres;
– Demoliram os direitos dos trabalhadores remercantilizando o trabalho humano subordinado;
– Entregaram as riquezas do subsolo à rapina internacional. Debilitaram a Petrobras e criaram milhões de desempregados;
– Condenaram Lula sem crime e sem provas e ampliaram a pena no TRF4;
– Empoderaram as guildas que, sem vergonha, se esbaldam em arbitrariedades, pensando que tudo podem, inclusive ampliar seus privilégios insanos;
– Prenderão o maior líder vivo das lutas sociais, em âmbito global;
– Estancaram “a sangria, com Supremo, com tudo” entregando o poder político a uma quadrilha;
– Acabaram com o FIES, com o “ciência sem fronteiras”, reduziram drasticamente as bolsas de estudo, destruindo a educação pública e impedindo o acesso de milhares ao ensino superior;
– Concentraram riqueza nas mãos de poucos, ampliando a miséria;
– Instalaram o Estado de Exceção, suspenderam as garantias constitucionais; etc, etc, etc.

Comparando com todo o resto, convenhamos, a Reforma da Previdência parece, se não irrelevante, pelo menos de menor impacto social. Com a consciência de que a frase dita desse modo direto, puro e sem gelo, é difícil tragar, sigo a reflexão.

Houve enormes mobilizações sociais, a intelectualidade e os artistas se revoltaram (do lado de lá somente medíocres), greves amplas foram realizadas, mas – reconheçamos novamente – essas importantes lutas sociais não tiveram a expressão e não se verificou a cólera esperadas diante de tanta iniquidade, de tantas maldades.

Por que razão o povo brasileiro suporta tudo isso é questão a ser respondida daqui a alguns anos. Por enquanto só se tem hipóteses ou arremedos de tentativas de explicação.

Certo é que não estavam, e parecem não estar, presentes as condições subjetivas para a insurgência real, suficientemente potente, contra os algozes que atenazam, garroteiam, as maiorias. Poucos teriam dúvidas de que há quase um século não havia, no Brasil, tamanha confluência de tantas condições objetivas para a revolta violenta por parte das massas cruelmente expoliadas.

O capitalismo desde o Golpe perdeu o pouco que havia de pudor para assumir-se como é, sem dissimulação, e seus agentes (inclusive aqueles investidos por concursos no aparato repressivo estatal) apresentam-se, de modo descomplexado, como verdadeiramente são, como sempre foram. Perderam a noção do perigo? Pior, muito pior, têm a certeza da impunidade, a convicção de que não correm riscos.

A imoderação, enfim, vem caracterizando os beneficiários pelo Golpe iniciado em 2016. Gulosos, empanturram-se de benesses e atribuem-se vantagens e privilégios com um apetite ilimitado. E o povo, como que lobotomizado, no máximo ensaia despolitizados e inúteis “fora Temer” sem entender bem “esse negócio de divisão dos poderes”. Para a patuleia eles (governo, elites, judiciário, banqueiros) são “tudo a mesma coisa, farinhas do mesmo saco”.

Mesmo os moralistas (os que entoaram hinos fantasiados de patriotas “padrão Fifa”, e os pós-modernos, descolados) no máximo, murmuram suaves reparos, meros muxoxos, diante de escandalosos escárnios daqueles que lamentam não poder “ir toda hora a Miami comprar ternos” e que delinquem “para compensar a falta de reajuste” ou se divertem com a fala alucinada da depravada da suruba na lancha. Todos parecem até felizes em ter “seu país de volta”, afinal, “tiraram o petê” (não pelos seus defeitos, mas pelos seus méritos redistributivistas).

Sinceramente, qual a importância relativa de uma maldade a mais, desta horrorosa Reforma da Previdência, considerando todo o resto?

Seria grosseiro fazer a pergunta com as palavras preferidas no meu bairro da infância; tentemos suavizá-la: o que é essa maldade para quem já sofre com todas as demais? Por que é tão importante?

A resposta à impertinente e inoportuna indagação pode chocar. Porque agora a maldade alcança também setores que não se sentiram particularmente afetados pelas anteriores “reformas” nem pela ruptura da constitucionalidade democrática.

Não há transformação sem que estejam presentes as mencionadas condições objetivas. E talvez nunca essas condições objetivas tenham sido tão evidentes como depois do Golpe. Todavia, para a percepção de que a injustiça e a exploração chegaram a níveis insuportáveis faz-se necessária a consciência de que, unidas, as pessoas podem construir uma outra realidade (eis aqui as aludidas condições subjetivas). A “necessidade” da prisão do Lula decorre disso.

Feitas tais ponderações pode-se concluir que, já que perdemos todo o resto, não parece despropositado até desejar que a Reforma da Previdência seja aprovada logo, atingindo agora também os nababos e os imobilistas que não se abalaram contra as outras atrocidades. Não se trata, de modo algum, de desejar o “quanto pior, melhor”. Objetivamente, a classe trabalhadora já não tem mais nada a perder, exceto os grilhões. A imensa maioria do povo haverá de sentir que as perdas anteriores foram muito mais severas, e atuais. Talvez com a revolta das “classes médias” (essa abominação, disse Chauí), perdendo as aposentadorias, as necessárias condições subjetivas para a insurreição se apresentem de modo menos obscuro. Talvez essa venha a ser a derradeira maldade que torne intolerável a aceitação de todo o resto. Talvez não. Quem sabe?

Já que foi o zap, que vá o sete-copas, diria um aficcionado pelo truco. Serei duramente prejudicado pela Reforma Previdenciária (sou barnabé, professor na UFPR), mas está em jogo algo muito mais importante que meus mesquinhos e egoístas interesses individuais. A classe trabalhadora tem muito a perder com a Reforma Previdenciária. E sabe disso, não nos enganemos. Mas ainda acredita que, eleito, Lula consertará o estrago feito.

Com o fim do Direito à Aposentadoria, intolerável sob todos os aspectos, e com a prisão do Lula, talvez – não tenho nenhuma certeza disso – as desejáveis condições subjetivas se imponham como imperativo ético.

Por via das dúvidas, respeitando as posições em contrário, embora não a apóie, conscientemente escolho não me mobilizar contra a Reforma da Previdência. Sou esquisito, todos sabem.

Wilson Ramos Filho, doutor em Direito, preside o Instituto Defesa da Classe Trabalhadora (Declatra).