Foto: Júlio Carignano

Por Bruna Bandeira da Luz e Júlio Carignano

Contrastando com as atividades comemorativas ao longo do mês alusivas ao Dia do Índio –  19 de abril – estão demarcações paralisadas, poucas áreas em processo de identificação, o  esvaziamento da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e a escalada de ódio às minorias. Um cenário que se acentuou após dois anos da sessão na Câmara dos Deputados que, em 17 de abril de 2016, autorizou o prosseguimento do processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT).

No lugar da petista assumiu o vice Michel Temer (MDB) com uma proposta bem diferente de sua antecessora, especialmente no sentido de fortalecer setores conservadores no Congresso e de propor uma agenda de retrocessos e perdas de direitos. Neste contexto, os povos indígenas não ficaram imunes, bem pelo contrário, tornaram-se junto com as comunidades quilombolas, os alvos prioritários da faceta do golpe que busca abrir o território nacional para exploração privada nacional e internacional. Neste contexto ganhou força a Proposta de Emenda à Constituição 215 (PEC 215) e o chamado “Marco Temporal”.

Como reação a esse cenário de retrocessos, povos de todo país participam entre os dias 23 e 27 de abril do Acampamento Terra Livre. Em sua 15ª edição, a maior mobilização indígena do Brasil terá como mote “Unificar as lutas em defesa do Brasil Indígena – Pela garantia dos direitos originários dos nossos povos”. Estão previstos atos, marchas e debates sobre temas como a demarcação de terras, a criminalização dos movimentos indígenas, as iniciativas legislativas anti-indígenas e a precarização de serviços básicos como educação e saúde.

Em um momento em que a pauta indígena não pode ser outra que não a da resistência, entrevistamos o indigenista e historiador Paulo Porto Borges, que trabalha com povos indígenas há 28 anos. Ele falou sobre o significado atual do Dia do Índio, sobre a conjuntura após o golpe de 2016 e de como isso tem refletivo no Paraná, especialmente na região Oeste – palco de uma série de conflitos territoriais. Vereador do PCdoB em Cascavel, Porto também opinou sobre a participação efetiva dos indígenas no processo político. Confira.

Sobre o Dia do Índio. O que ele representou na sua criação e o que representa hoje aos povos indígenas?

Porto: O Dia do Índio foi criado por Getúlio Vargas para comemorar e dar visibilidade a questão indígena. Hoje ele é muito mais do que isso. De umas décadas para cá o movimento indígena se apropriou desta data simbólica para transforma-la em uma data de luta e reflexão para se debater os reais problemas e demandas das comunidades, em especial a questão da demarcação territorial, do direito à uma educação e cultura diferenciada, direito à língua, respeito as regras constitucionais que dão garantias aos povos indígenas. Hoje o 19 de abril é uma data de luta e reflexão onde os povos indígenas aproveitam para apresentar suas reivindicações. Para a sociedade brasileira de uma maneira geral, ela serve para mostrar que esses povos estão vivos e vão muito além do que os livros didáticos ensinam.

Como ficou a questão indígena depois do golpe de 2016?

Porto: Uma situação que já era ruim piorou muito, em especial por esta onda de ódio na perspectiva das minorias. Não lembro de um cenário tão adverso em termos de discursos institucionais. Este cenário vem permitindo certos ataques. O ataque vem através da PEC 215, uma proposta que busca retirar do executivo a demarcação de terras e jogar para o legislativo, para o Congresso Nacional dominado pelas bancadas do boi e da bala. Sem dúvidas, nenhuma demarcação passaria, isso praticamente inviabilizaria novas demarcações. Outro ataque é o chamado Marco Temporal. Existe uma interpretação equivocada de setores do judiciário de que todas as terras ocupadas pelos indígenas após a Constituição de 1988 não seriam passiveis de demarcação. Além disso, tem o Marco da Mineração. Segundo a nossa Constituição, somente empresas estatais ou com a anuência do Congresso podem explorar minérios de áreas indígenas. O marco quer derrubar esta cláusula, permitindo que empresas privadas possam adentrar, desde que com anuência da comunidade, áreas indígenas para explorar o subsolo. Isso causará um caos dentro destas comunidades, inclusive apontando para quase um genocídio e disputas internas com consequências imprevisíveis. Estes três ataques chegam com muito mais força após o golpe de 2016.

Como os povos indígenas estão se organizando diante da atual conjuntura?

Porto: Na próxima semana, a partir do dia 23 de abril, se inicia o Acampamento Terra Livre, uma manifestação dos povos indígenas do Brasil, que contará com lideranças de todo o país, com o objetivo de ocupar Brasília e pressionar o Congresso para que estes remendos na Constituição não avancem. Os indígenas têm total clareza que são a bola da vez no Congresso Nacional e do golpe, que tem como objetivo abrir as terras para o capital internacional e privado nacional. Lembrando que quando se demarca uma terra indígena, estes têm só o usufruto da terra, que segue sendo da União. Quando você demarca um território você tira a terra das mãos da exploração econômica e ela fica a disposição dos interesses nacionais.

Paulo Porto, indigenista e historiador, trabalha com povos indígenas há 28 anos. Foto: Gibran Mendes

Como esta realidade se reflete no Paraná, em especial na região Oeste?

Porto: Isso se reflete em especial nas disputas territoriais no Oeste do Paraná, nas áreas retomadas de Guaíra, Terra Roxa, Santa Helena e Itaipulândia. Se reflete no discurso oportunista de vários deputados federais e pré-candidatos, que utilizam este discurso de desinformação para angariar votos, a partir desta perspectiva mais conservadora. Como Brizola dizia em relação a alguns políticos: são pescadores de águas turvas. Isso reflete no direito dos povos a seus territórios. Parte do território tradicional indígena na região foi alagado pela subida das águas em Itaipu. Estudos da própria Itaipu apontam uma dívida de 10 mil hectares, ainda não saudada, junto aos Guarani. Como as terras originais destes povos estão embaixo da água, eles estão em torno da represa, ocupando áreas públicas para retomar parte do seu antigo território. Isso só será resolvido com a intervenção do estado. A Itaipu é a grande culpada pela situação, além do SPI [Serviço de Proteção ao Índio – antigo FUNAI] que nos anos 50 fez uma limpeza étnica remanejando os indígenas para a reserva Rio das Cobras. Estas ações acabaram criando um déficit monstruoso, resultando neste conflito territorial onde temos duas vítimas, o pequeno produtor e os indígenas.

Como explica essa situação dos pequenos produtores e povos indígenas, ambos vítimas, mas colocados em lados opostos?

Porto: Um dos grandes instrumentos do discurso do ódio nasce em colocar oprimido contra oprimido. Algumas posturas, discursos de políticos em especial, além da postura omissa, inoperante e irresponsável da Itaipu, acaba colocando dois grupos que são atingidos pelo mesmo problema, como grupos antagonistas. São duas faces da mesma moeda. Os dois têm seus direitos. E quem tem que garantir estes direitos? Exatamente quem os desprivou destes direitos territoriais. Enquanto isso não estiver claro, podemos ter um debate muito infértil, que fortalece o discurso de ódio.

Falando em representação e protagonismo indígena. Como avalia o lançamento da pré-candidatura à vice-presidência da líder indígena Sonia Guajajara na chapa do PSOL?

Porto: Há algumas décadas as lideranças indígenas passaram a entender a importância de entrar no debate político mais específico e qualificado, a importância de ter seus projetos representados a partir de siglas partidárias, a importância de serem protagonistas no jogo partidário e de entenderem que existem projetos em jogo. Vou dar um exemplo: o PT ganhar as eleições ou o PSDB ganhar as eleições terá consequência direta para eles, até porque a questão indígena é de âmbito nacional e se resolve via Congresso Nacional, via União. Isso é algo novo e recente. Diante disso, eu saúdo a presença da Sonia Guajajara como pré-candidata à vice-presidência na chapa do PSOL porque vem a concretizar e avançar o debate já maduro junto às lideranças indígenas de serem protagonistas de seus próprios destinos. Em um país como o Brasil ou qualquer país capitalista, que existem classes sociais, é fundamental os indígenas terem essa clareza e se posicionarem politicamente.