Tanta gente sem casa, tanta casa sem gente

Vigília pelos direitos da população de rua cobrou uma política intersetorial no município de Curitiba





Vigília na Praça Rui Barbosa em defesa das pessoas em situação de rua. Foto: Júlio Carignano

Basta uma rápida caminhada pelo centro de Curitiba para nos depararmos com uma série de edificações abandonadas, servindo apenas para o mercado especulativo. Imóveis que poderiam ser recuperados e ofertados como habitação popular. No mesmo espaço a população em situação de rua cresce em grandes proporções. Uma realidade que remete a um antigo slogan, porém cada vez mais atual: há tanta gente sem casa, mas tanta casa sem gente.

Tanta gente que sofre com o cotidiano da miséria, gente que sofre com o preconceito, com abordagens violentas e até mesmo com a morte ocasionada pela ausência de políticas públicas de habitação. Pessoas como as quatro vítimas fatais do frio em Curitiba nas últimas semanas. Mortes lembradas na vigília organizada pelo Movimento Nacional de População em Situação de Rua (MNPR) e a sociedade civil organizada, na Praça Rui Barbosa, ponto central e de aglomeração de moradores de rua na capital paranaense.

Ocorrida no dia 26 de junho, a vigília prestou homenagem aos mortos e denunciou a ausência de políticas efetivas no município em relação às pessoas em situação de vulnerabilidade. Os organizadores apontaram o descaso da Prefeitura de Curitiba ao adotar uma posição de isenção de responsabilidade em relação aos óbitos. “Essa vigília foi pensada a partir do momento em que o gestor público do município faz comentários culpando as pessoas por estarem morrendo nas ruas de Curitiba”, afirmou Maurício Pereira, da coordenação do MNPR, referindo-se a declarações de Rafael Greca.

Os líderes do MNPR cobram uma política municipal para a população em situação de rua, com adesão à política nacional, de forma intersetorial, que extrapole a política de assistência social e inclua outras secretarias. “Em Curitiba, assim como em várias capitais, temos unicamente a política da assistência social. Isso acontece há 30 anos na cidade e nunca resolveu. Pelo contrário, só tem aumentado a população de rua”, aponta Leonildo José Monteiro, coordenador do MNPR e integrante do Conselho Nacional de Direitos Humanos.

Monteiro acrescenta a ausência de um censo do município, com pesquisas com determinada frequência de modo a garantir o acompanhamento sistemático e histórico do número de pessoas em situação de rua na cidade. Apesar de não haver um levantamento oficial, o MNPR estima que cerca de 5 mil pessoas estejam em situação de rua em Curitiba e região metropolitana. O líder do movimento também critica a “política higienista” da gestão de Rafael Greca. “Você não acaba com a pobreza reprimindo pessoas ou promovendo violações contra a população de rua”.

O atual prefeito é alvo de críticas por suas ações em relação aos moradores de rua.  Entre as medidas chamadas “higienistas” destaca-se a atitude de ter lavado o calçadão da rua XV de Novembro, fechar guarda-volumes e ordenar que a guarda municipal retirasse à força os pertences de moradores de rua. Em momento de ‘descuido’, Greca chegou a declarar “que a primeira vez que tentou ajudar um pobre vomitou por causa do cheiro”.

“Moradia é central”

O antropólogo Tomás Melo, que integra o Instituto Nacional de Direitos Humanos da População de Rua (INRua), sediado em Curitiba, afirma que é preciso pensar em estratégias para diminuir o número de pessoas em situação de rua, mas que sejam alternativas  permanentes e que garantam a autonomia dessas pessoas. “Estamos falando de pessoas adultas, das quais o estado não pode ter a tutela. Não podemos obrigar elas a irem para determinados lugares a força. Todos os discursos de criminalização vem no sentido que essas pessoas não querem sair das ruas. Mas não querem o que? Quais as opções que estão dando para essas pessoas?”, questiona.

Para Melo, o problema central é a moradia. “Quando não se tem um espaço para essa pessoa organizar sua recuperação de doenças, se recuperar da drogatição, para se organizar enquanto trabalhador, se organizar para sua higiene. Não há sequer acesso a banheiros públicos. Como se organizar para procurar um emprego? Como competir com a população domiciliada?”, indaga.

O antropólogo aponta a locação social em espaços públicos como uma alternativa. “Você não precisa ter uma escola para ter acesso a educação, não precisa ter um hospital para ter saúde. A moradia é um direito meio, que possibilita você usufruir de outros espaços da cidade”, diz Melo.

A questão da habitação popular é outro alvo de críticas à gestão municipal. A crise no setor reflete-se na atual situação da Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab), que recentemente passou por uma greve. Atualmente, há 51 mil pessoas inscritas na fila da companhia pelo acesso à casa própria. Na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2019 está prevista a construção de apenas 30 unidades de habitação popular em Curitiba. Na semana passada, uma emenda apresentada na Câmara buscava duplicar essa meta, porém ela foi rejeitada pela base do prefeito na legislativo.

A locação social, citada por Tomás Melo, também não avança no município, apesar da  lei que criou o Programa Aluguel Social (PAS), ainda em 2015, destinado à famílias de baixa renda que não tem imóvel próprio e que estão em situação habitacional de emergência. Sancionada pelo ex-prefeito Gustavo Fruet, a lei deveria ser regulamentada no prazo de 120 dias após sua sanção, porém o programa nunca saiu do papel.

Promoção de cidadania

Presentes na vigília, representantes do Ministério Público e a Defensoria Pública do Paraná apontaram a criação de um plano municipal como essencial. “Já fizemos recomendações ao município de Curitiba para que efetivamente crie uma política para atendimento aos direitos da população em situação de rua. Um plano adequado a realidade da cidade e que possa ser monitorado pela sociedade como um todo”, defende Olympio de Sá Sotto Maior Neto, procurador de Justiça e coordenador de direitos humanos no MP-PR.

Para Cíntia Azevedo, coordenadora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Paraná, o atendimento à população de rua não pode ser simplesmente um atendimento de assistência social. “Esse atendimento precisa ser intersetorial, envolvendo todas as pastas da prefeitura”, ressalta a defensora pública.

“Para mulher é dez vezes pior”

Há um mês e meio dormindo na praça Rui Barbosa ou no calçadão da XV, Irene é conhecida como “Pati” entre as pessoas em situação em rua. Ela aponta a dificuldade de ser mulher moradora de rua. “Se para um homem é difícil estar na rua para uma mulher é dez vezes pior. Há a questão do assédio, ficamos com TPM, temos a questão da nossa higienização. Para tomar um banho é complicado. Já passei por situações que nunca imaginei que passaria”, diz Pati.

Para Mauricio Pereira, a população em situação de rua está sendo vítima da própria política instituída pelo município para lhes proteger. “É o medo, a humilhação, as agressões constantes daqueles que tinham que nos proteger. É a GM [guarda municipal] nos apertando os culhões, sumindo com nossos pertences dos guardas volumes, nos dando metades de sabonetes usados e toalhas sujas e os restos que são doados pela sociedade civil”, diz o coordenador do MNPR, que esteve em situação de rua entre os anos de 2011 e 2014.

Ao fim da vigília, os representantes do MP e da Defensoria Pública receberam um documento com exigências dos movimentos e entidades organizadores. Entre os principais pontos está a criação de uma política municipal intersetorial; uma política de moradia permanente que produza possibilidades de saída das ruas com autonomia e participação dos beneficiários da política; realização de pesquisas com determinada frequência de modo a garantir o acompanhamento sistemático e histórico do número de pessoas em situação de rua na cidade; e que a questão das baixas temperaturas no inverno e o aumento do número de acolhimentos não sejam tratadas como uma ocasião de estratégias emergenciais, uma vez que é um fato previsível, tratando-se de uma característica de Curitiba.

Além do MNPR e do INRua, participaram da organização da vigília o Instituto Lixo e Cidadania (ILIX), Movimento Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (MNCR), Arquidiocese de Curitiba, Pastoral do Povo de Rua, Casa de Acolhida São José, Projeto Mãos Invisíveis, Conselho Regional de Serviço Social do Paraná (CRESS/PR) e o Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP/08).

Confira imagens da vigília na Praça Rui Barbosa.