Construção de Itaipu provocou graves violações de direitos dos povos indígenas, aponta PGR

Relatório apontou fraudes na identificação étnica das comunidades com intuito de subestimar população indígena e, consequentemente, o impacto social da obra para a região





Indígenas Guarani às margens do Lago de Itaipu. Foto: Paulo Porto

A construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu Binacional durante a ditadura militar (1964-1985) causou graves violações dos povos indígenas que habitavam na região da tríplice fronteira entre o Brasil, Argentina e Paraguai. É o que aponta relatório da Procuradoria Geral da República (PGR) divulgado nesta quinta-feira (25) pela procuradora-geral Raquel Dodge.

Produzido ao longo dos últimos três anos, o relatório aponta que o governo militar fraudou documentações com o intuito de adulterar procedimentos identificatórios e subestimar o número de indígenas na região e, consequentemente, o impacto social que a obra da usina traria. Segundo a PGR, o relatório poderá embasar ações judiciais para a responsabilização da União e de demarcações na região Oeste do Paraná.

Maior hidrelétrica do país, Itaipu foi projetada e construída de 1975 a 1982 durante os governos dos generais Ernesto Geisel (1907-1996) e João Figueiredo (1918-1999). Por se tratar de uma empresa binacional, a legislação prevê que uma eventual ação judicial contra a usina deve tramitar no Supremo Tribunal Federal (STF). Em razão disso houve participação da PGR na elaboração do relatório.

Para criar o lago artificial, a obra inundou cerca de 135 mil hectares e transferiu 40 mil pessoas entre índios e não índios no Paraná. Na área afetada estavam diversos territórios considerados tradicionais pelos Avá-Guarani.

O estudo concluiu que apenas uma pequena parcela da comunidade indígena de Ocoy foi reconhecida como indígena pela Fundação Nacional do Índio (Funai), na época gerida por um general do exército. Essa comunidade foi reassentada em um área em São Miguel do Iguaçu “em condições piores do que as que enfrentava antes”.

“Todas as demais localidades existentes entre Foz do Iguaçu e Guaíra foram completamente ignoradas e as famílias indígenas que nelas viviam foram tratadas como posseiros e invasores (porque não tinha documentos das terras), sendo delas expulsas sem nenhum ressarcimento”, diz o relatório por procuradores da república e pela antropóloga Luciana Maria de Moura Ramos.

Para estabelecer o número de indígenas que viviam na região na época da obra, a Funai recorreu a um método abolido nos anos seguintes e, segundo o relatório, usado somente naquele empreendimento, a fim de “testar o grau de indianidade” de cada uma das pessoas que habitavam a região de Ocoy. Na época da ditadura, testes para identificar uma suposta “indianidade” eram estimulados por um coronel do Exército que atuava na Funai.

“Esse era um procedimento que a maioria dos antropólogos não aceitaria realizar por fugir aos parâmetros antropológicos e por violar os procedimentos que eram, já naquela época, internacionalmente reconhecidos no que tange ao autorreconhecimento e ao reconhecimento pelos demais membros do grupo. Ocorre que [o antropólogo] era filho de criação de Ernesto Geisel e estava profundamente vinculado ao regime militar”, continua o relatório. O antropólogo e o coronel já faleceram

A apuração da PGR se estendeu por cerca de 30 meses com a tomada de depoimentos de indígenas, viagens à região, uma perícia antropológica em diversas comunidades indígenas e acesso a mais de duas centenas de documentos e relatórios, dos quais oito produzidos por Itaipu, 13 pela Funai, sete em conjunto pela Funai e Itaipu e quatro documentos de entidades indigenistas, além da análise de mais de uma centena de pesquisas acadêmicas realizadas ao longo dos anos.

Todo o impacto da construção da usina aponta no relatório desmente a história oficial ainda hoje usada pela Itaipu de que havia um “vazio demográfico” na região. O relatório aponta o contrário e ainda confirma que a construção provocou danos que se estenderam por toda a comunidade indígena ao longo dos anos e que hoje são raiz dos problemas atuais que vivem as comunidades indígenas do Oeste do Paraná, como a fome, o desemprego, desnutrição e a discriminação por seguirem lutando por terra região.

Outro lado

Por meio de nota pública, a Itaipu Binacional afirma que todo o processo de reassentamento que diz respeito às populações indígenas identificadas foi acompanhado por entidades “legalmente competentes envolvidas com a questão”.

A nota afirma que não houve laudo atestando a “inexistência de indígenas nas áreas alagadas, numa ação deliberada que tornou as comunidades invisíveis”. A usina continua apresentando sua versão que em 1977 foram identificadas apenas 11 famílias indígenas compostas por 27 pessoas, que viviam em aproximadamente 30 hectares às margens do rio Paraná, entre os rios Ocoy e Jacutinga, na área de abrangência onde se formaria o reservatório da Usina de Itaipu.

Em sua resposta, a Itaipu aponta que atua com recursos financeiros e humanos, por meio de convênios com municípios, na melhoria das três comunidades indígenas hoje regularizadas na região. A Usina disse que está colaborando com a Justiça para o esclarecimento dos fatos.