Um paraíso para turistas, um inferno para trabalhadores

Cotidiano dos tripulantes de cruzeiros esconde rotina de jornada exaustiva e assédios, mas legislação protege vítimas





Foto: Alexandre Macieira/ Riotur/Fotos Públicas

Atrás das selfies ensolaradas de famílias que buscam em alto mar a tranquilidade reconfortante das férias esconde-se uma rotina de constante violação dos direitos trabalhistas. Essa é a análise reiterada de três trabalhadores ouvidos pela reportagem que relatam uma rotina de jornadas exaustivas, assédios morais e sexuais, além de uma série de outras violações trabalhistas.

Tiago*, de 34 anos, é um deles. Ele trabalhou em três empresas que fazem cruzeiros que passam pela costa brasileira. De acordo com ele, se a realidade já não é fácil em território nacional, a situação piora quando o navio parte rumo à outros países. “Neste caso ainda somos um pouco respeitados. Embora a jornada máxima seja de 11 horas, você acaba trabalhando mais que isso e é obrigado a colocar outro horário porque eles têm medo do Ministério Público. Mas uma vez encerrada a temporada brasileira a realidade já era outra. Você poderia fazer até 18 horas seguidas e caso reclamasse ouvia claramente a frase em inglês ‘se você não gosta, vá para casa’”, relata.

De acordo com Tiago, ficar doente significa um grande prejuízo para o trabalhador. “No meu caso chegaram descontar US$ 200 por um dia que não tinha a menor condição de trabalhar”, recorda. Assim como há uma grande mudança a partir da saída do Brasil, a nacionalidade também influi diretamente nas relações de trabalho. “No caso de pessoas da Índia e da Indonésia a situação é ainda pior. Vi, uma vez, uma chefia fazer um indiano com mais de 50 anos de idade ficar de joelhos limpando o seu escritório por duas horas”, exemplifica. Os brasileiros neste caso, segundo o Tiago, estariam em uma posição intermediária, com europeus sendo privilegiados tanto nas relações de trabalho quanto nos rendimentos ao final do mês.

Saúde e preconceito

Samuel*, também de 34 anos, trabalha com cruzeiros desde 2011 e disse já ter vivenciado diversos tipos de preconceito enquanto estava a bordo, desde a separação dos trabalhadores de escalação mais baixo no momento da alimentação, até por doenças.

Soropositivo, Samuel viu a informação que repassou ao médico do navio vazar do consultório e pouco tempo depois todo o navio estava sabendo. “Passei mal e informei ao médico a minha situação. Depois disso minha situação se tornou pública e todos já estavam sabendo. Me foi dito que não poderia estar trabalhando ali e desde então começaram a me tratar de forma diferente. Sempre havia um supervisor ao meu lado vistoriando minhas atividades, coisa que não acontecia antes”, afirmou.

Em dezembro do ano passado ele foi vítima de assédio sexual por parte de um colega de trabalho recém-embargado. Na cabine que dividia, cujas camas são separadas por uma cortina para manter o mínimo de privacidade, ele passou a encontrar seu colega nu em sua cama. “Uma vez ao sair do banho ele tentou me abraçar, veio cheirando meu pescoço. Também aconteceu de chegar na cabine e ele estar nu, deitado em minha cama”, recorda. A denúncia feita aos seus superiores, contudo, não resultou em nada. “Depois deste fato uma passageira fez uma reclamação de limpeza na cabine, fui chamado pela minha chefia que me humilhou na frente do passageiro. No dia seguinte fui chamado pelo capitão e demitido. Quando falei da situação do assédio, ele disse que problemas amorosos não poderiam refletir no trabalho. Tive 15 minutos para fazer minha mala enquanto um segurança ficava de olho em mim”, completou.

Assédio sexual contra mulheres

Se para homens a situação de vulnerabilidade por estar em alto mar, longe da família e do seu próprio país já é complicada, para mulheres a situação se agrava. Elas são alvos constantes de assédio sexual por parte dos seus superiores. Cinthia*, XX anos, relata que já no curso obrigatório para embarcar nos cruzeiros o assédio é mencionado como algo corriqueiro. “A orientação é para fecharmos os olhos, que deveríamos saber que vamos enfrentar assédio sim. Ou fazemos o que eles querem (ceder) ou devemos tentar desviar desta situação até chegar ao final do contrato”, enfatiza.

De acordo com ela, o assédio é constante e as mulheres são assediadas a todo momento, tanto por colegas de trabalho de grau hierárquico do mesmo nível, quanto por superiores. Uma das situações com Cinthia aconteceu com uma chefia dos níveis acima do seu posto de trabalho. “Eu era perseguida em todos os locais do navio. Ele falava bobagens no meu ouvido, perguntava a cor da minha calcinha e dizia para eu ir até sua cabine para ter relações sexuais com ele”, lembra.

Diante das negativas, Cinthia relata que passou a ser constantemente perseguida. “Eu fui colocada em situações para não dar conta da demanda de trabalho, tive advertências forjadas falando sobre baixa performance e fui alertada de que eles poderiam forjar qualquer tipo de situação para me prejudicar”, denuncia. Quando a situação ficou insustentável, ela pediu demissão no dia 15 de novembro para desembarcar no dia 23. “Mas um dia antes eles inventaram uma advertência para me desembarcar por justa causa”, afirma.

A situação é semelhante a que passam diversas outras mulheres. “Se não aceita ao assédio, as jornadas de trabalho são ampliadas, as escalas de trabalho são dificultadas, pegando horários com pouco tempo de descanso e muitas vezes com cursos e treinamentos nos horários de descanso. O objetivo é desestabilizar psicológica e fisicamente”, descreve.

Proteção legal

Recentemente o Tribunal Superior do Trabalho (TST) firmou jurisprudência no sentido de que em caso de reclamação trabalhista deverá ser aplicada, aos empregados brasileiros, a norma mais favorável. Prevalecendo, em tais casos, a legislação brasileira.

De acordo com o advogado Nuredin Ahmad Allan, nestes casos há uma situação bem específica. Normalmente tratam-se de empresas com sede no Brasil, mas com matriz estabelecidas em outros países. “Como cruzeiros envolvem várias rotas distintas, quando chegam à costa brasileira, há contratação de brasileiros, inclusive com obrigatoriedade a partir de um ajuste feito com o Ministério do Trabalho. Nestes casos, um percentual dos tripulantes necessariamente precisam ser brasileiros”, explica.

Nuredin Ahmad Allan, advogado trabalhista. Foto: Gibran Mendes

“Há o Código de Bustamante, uma norma de direito internacional privado, que trata de questões que envolvem embarcações e aeronaves. No caso dos navios, é a bandeira da nacionalidade que ele leva, que dará a linha da legislação a ser seguida. Contudo, não trata de relações e trabalho ou sociais. Ela não regula o direito do trabalho”, esclarece o advogado. “Se o trabalhador é contratado no Brasil aplica-se a lei brasileira, usualmente a mais favorável, seguindo orientações da OIT”, completa.

Essa normatização vale para todas as contratações em situações semelhantes, como engenheiros contratados no Brasil para atuar em outros países, situação que inclusive justificou, no passado, a edição de legislação para regular a matéria.

No caso dos trabalhadores dos cruzeiros ainda há o agravante da fragilidade estabelecida nas relações de trabalho. “É comum o julgador considerar no campo da análise da norma jurídica esse fato. Ele sabe que o empregado é submetido a jornadas extenuantes, assédio moral e sexual, dano existencial e todo o tipo de violação contratual. Normalmente os tribunais consideram este nível de exposição e vulnerabilidade que o trabalhador é submetido nesta relação contratual”, finaliza Allan.

*Os nomes foram omitidos para proteção dos trabalhadores ouvidos pela reportagem.