100 dias de um governo anti-indígena

Pela primeira vez desde a Nova República, o movimento indígena encontra-se em frente de um governo sem nenhuma contradição em relação a temática indígena





Comunidade Guarani no Oeste do Paraná. Foto: Paulo Porto

*Paulo Porto Borges

Desde que foi criado o Dia do Índio em 1943, por iniciativa de Getúlio Vargas, sua comemoração sempre foi permeada por reconhecimento das demandas indígenas do Estado e das organizações da sociedade não-índia. Porém, foi somente a partir dos anos 80 que os povos indígenas e suas lideranças trouxeram para si o protagonismo da data, que deixou de ser apenas uma comemoração simbólica de caráter estatal para ser um dia de luta, identidade e resistência.

Entretanto o 19 de abril de 2019 é distinto dos demais, pois apesar de os indígenas brasileiros sempre terem dificuldade em afirmar suas demandas em todos governos (sem exceção) desde o advento da chamada Nova República – seja no governo de transição de Sarney, nos governos neoliberais de Collor, Itamar e FHC, seja nos governos de caráter popular de Lula e Dilma – mas dentro de contradições maiores ou menores sempre conseguiam avançar no sentido de afirmação de seus direitos. O maior exemplo foi a Assembleia Constituinte de 1988 que referendou parte destes direitos e demandas como educação diferenciada e específica, o direito a língua e aos territórios tradicionais.

Porém, pela primeira vez desde a Nova República, o movimento indígena encontra-se em frente de um governo sem nenhuma contradição em relação a temática indígena. É como se a mediação entre o capital e o Estado não existisse mais, neste caso entre os interesses do Estado e do capital agrário. O agronegócio não se encontra mais mediado e representado pelo Estado, como bem ou mal ocorria nos governos anteriores. No governo Bolsonaro o agronegócio, as mineradoras e o capital agrário são o próprio Estado. Enfim, pela primeira vez os povos indígenas tem um Estado verdadeiramente inimigo que declara guerra aos cerca de 305 povos do Brasil.

E isso não acontece somente de maneira simbólica. Basta lembrar a frase proferida pelo então deputado Bolsonaro em 15 de abril de 1998, quando ao declarar sua admiração as forças de segurança estadunidenses afirmou que “a cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país”. Esta frase tem a força de uma sentença e sintetiza de forma muito clara e didática – dentro do absoluto simplismo do atual presidente – que a questão indígena não passa de um problema a ser resolvido de uma forma ou de outra. Já que no passado não fizemos a limpeza étnica então que façamos agora. É como se avançassemos de “bandido bom é bandido morto” para a famosa frase do também militar Custer “índio bom índio é morto”.

O fato é que a “cavalaria” já se encontra a postos no Congresso a partir das diversas PECs que têm como objetivo esquartejar a Carta Magna de 1988, em especial o Capítulo VIII denominado “Dos Índios”, no qual se asseguram o direito a diferença e a terra, esse último o alvo principal, pois obviamente sem terra não haverão direitos. Isso remete a um ditado Guarani que diz que “sem tekoha não teko”, isto é, sem “aldeia/território não há costume/cultura”.

Não a toa os principais ataques são a PEC da Mineração (que tem como objetivo abrir as terras indígenas a mineradoras privadas nacionais e transacionais), a transferência das demarcações territoriais do executivo para o legislativo e a redução das áreas já demarcadas por meio da tese do “Marco Temporal”. Três ataques que se completam em um único alvo: as áreas tradicionais indígenas. Para seus defensores é necessário abrir essas áreas para a exploração privada, não demarcá-las e quando possível retroagir nas demarcações já existentes. Vale lembrar que Bolsonaro foi eleito justamente com a promessa de “não demarcar nenhum centímetro de terra para os índios”.

A última faceta desse governo, declaradamente anti-indígena, foi a recente tentativa do Ministro da Justiça Sergio Moro em impedir o grande encontro indígena chamado Acampamento Terra Livre, que acontece há 15 anos sempre no mês abril na Esplanada dos Ministérios. Por meio da Portaria 441, Moro autorizou o uso da Força Nacional contra qualquer tipo de manifestação ou “desordem pública” na região dos ministérios para os próximos 33 dias, justamente no período que acontecerá o ATL (de 24 a 26 de abril).
Em resposta ao governo, organizações indígenas – entre elas a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) – publicaram notas convocando os 305 povos a ocuparem Brasília e reafirmarem suas demandas ao governo.

A verdade é que nos 100 primeiros dias do governo Bolsonaro, o grande enfrentamento do presidente não foi com os partidos de esquerda ou movimento sindical, que seguem com dificuldades de mobilização, mas justamente com os povos indígenas, que recentemente infligiram uma dura derrota no governo que foi o recuo em relação da extinção a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI).

O 19 de abril de 2019 é apenas um aquecimento do que virá por ai entre os dias 24 e 26 de abril; dias decisivos em relação aos próximos anos do governo Bolsonaro e o movimento indígena. Se os povos tradicionais terão seus direitos constitucionais rebaixados de forma definitiva ou se utilizando-se da mesma metáfora do presidente Jair Bolsonaro, o Acampamento Terra Livre se tornará o ‘Little Bighorn’ do atual governo.

* Paulo Porto é historiador, indigenista, professor universitário e vereador do PCdoB em Cascavel