Festa da democracia na inauguração do campo Dr. Sócrates na Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST, em Guararema-SP. Foto: Julio Carignano

Bento Ferreira de Souza, 60 anos, é um brasileiro apaixonado por futebol. Corintiano, assistiu atentamente, no sábado (23/12), a partida entre os amigos de Chico Buarque e do ex-presidente Lula contra os veteranos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), na inauguração do campo Doutor Sócrates, na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF).

Bento Ferreira. Foto: Julio Carignano

Assentado na pacata Brasília Paulista, em Piratininga (SP), Bento fez parte da brigada que iniciou a construção do espaço de formação do MST situado em Guararema, a 80 km da capital paulista. Na época, em 2000, ele ainda era um dos milhares de trabalhadores que debaixo de uma lona preta lutavam por um pedaço de terra para seus familiares.

Foram cinco anos e oito meses de trabalho, até a inauguração da escola em janeiro de 2005. Neste período, ele morou no local e voltava poucas vezes ao ano para ver a família. Há 17 anos, Bento Ferreira não imaginava que o presidente que ajudou a eleger por duas vezes e o artista que ouviu inúmeras vezes pelo rádio cantar Funeral de um lavrador estariam ali, naquele espaço, homenageando o ex-ídolo de seu clube do coração.

“Isso nos enche de alegria, vermos o fruto de um trabalho coletivo, da união do Movimento [Sem Terra]. Retornar depois de todo esse tempo e ver que tudo segue bem cuidado, tudo está cada vez mais bonito. É inacreditável”, disse Bento. Sentimento similar ao de Pedro Barbosa que ajudou na construção do campo Doutor Sócrates e no sábado (23) esteve na equipe de limpeza. “Nos sentimos tão homenageados quanto o Sócrates”, afirmou Barbosa, que é acampado em Ribeiro Preto, cidade de nascimento e sede do primeiro clube de Sócrates: o Botafogo (SP).

A homenagem a um dos maiores ídolos do futebol brasileiro, que faleceu em 2011, foi possível graças ao trabalho de Bento Ferreira, Pedro Barbosa e outras dezenas de trabalhadores, além dos colaboradores que contribuíram para um financiamento coletivo, lançado em junho do ano passado, que arrecadou cerca de R$ 60 mil. O processo de construção do campo Dr. Sócrates durou cerca de um ano. Artistas, jornalistas e esportistas de todo o país apoiaram a campanha e a idealização do projeto arquitetônico foi elaborado em parceria com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP).

Mais de mil pessoas estiveram na festa. Antes da partida que reuniu ex-jogadores, músicos, políticos, intelectuais, jornalistas e representantes de movimentos sociais e sindicais, uma série de atividades marcou as homenagens à Sócrates, familiares, jornalistas que foram amigos pessoais como Juca Kfouri e José Trajano e também para Chico Buarque, que esteve pela primeira vez na ENFF. “Estou orgulhoso de estar aqui na Escola Florestan Fernandes, um lugar que tenho um grande vínculo”, disse o artista.

“É um momento mais que justo, uma homenagem que precisava acontecer e no melhor lugar possível, aqui na Florestan Fernandes. Estou muito emocionado, pois fui um companheiro, um grande amigo do Doutor”, disse o jornalista José Trajano, ressaltando que Sócrates deixou um exemplo que deveria ser seguido por outros jogadores de futebol.

Para Juca Kfouri, não poderia haver local mais apropriado para a homenagem ao seu ex-amigo. “Não estamos falando do filósofo Sócrates, mas do jogador que foi um cidadão participante da vida pública brasileira, de alguém que lutou por um Brasil mais justo e menos desigual. Essa tarde, com toda essa militância reunida, não poderia ter mais a cara do Sócrates”, falou Juca, que posteriormente protagonizaria a “grande polêmica” da festa na condução da arbitragem da partida principal da tarde.

O árbitro Juca Kfouri. Foto: Joka Madruga/Terra Sem Males/MST

Barba, cabelo e bigode

Sócrates fez parte de um seleto grupo de ex-jogadores considerados “rebeldes da bola”, que no momento em que o país passava por uma ditadura se posicionaram contra o regime militar e participaram efetivamente da vida política. Neste rol estão craques com passagens pela seleção brasileira; como Afonsinho, Paulo César Caju e Reinaldo. Todos presentes na homenagem ao “Magrão”, maneira carinhosa como Sócrates era chamado por ex-companheiros.

“Fundamental marcar para sempre o nome do Sócrates e sua relação com o MST e com as ideias progressistas do Brasil. Que homenagens como essa possam se repetir porque as ideias do Sócrates são para sempre”, destacou Afonsinho, pioneiro na luta pelo passe livre no Brasil em 1971 e que no Botafogo liderou companheiros de time e uma campanha pelo pagamento de prêmios atrasados. Algum tempo depois, foi impedido pela diretoria alvinegra de jogar enquanto mantivesse o visual “subversivo”: cabelo comprido e barba.

Reinaldo, um dos maiores ídolos do Atlético Mineiro e ex-deputado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), também falou sobre legado de Sócrates. “O Magrão era um cara especial, pela sua atuação não somente em campo, mas também fora dele. O MST está de parabéns por essa homenagem”, disse o artilheiro que, assim como Sócrates, comemorava seus gols com o punho cerrado.

Reinaldo, ex-Atlético MG, comemora o primeiro gol do Campo Doutor Sócrates no estilo do Magrão. Foto: Joka Madruga/Terra Sem Males/MST

Para Caju, o evento representou uma resposta ao momento político do país. “O momento é difícil, estamos anestesiados, especialmente no Rio de Janeiro, minha cidade, onde está um caos geral”, destacou o ex-atacante do Botafogo e da seleção brasileira, que sempre teve como uma de suas referências o movimento dos Panteras Negras, dos Estados Unidos.

Do campo da reforma agrária para o campo de futebol

Com uma partida com tantos craques, onde a torcida esperava gols de Lula, Chico Buarque ou de ex-jogadores como Reinaldo, coube a duas mulheres com identificação com os movimentos da luta pela terra defenderem as traves.  No gol do time dos veteranos do MST estava Maike Weber, goleira profissional que atua pelo Flamengo. Maike é assentada do MST em Santa Catarina e teve sua primeira convocação para seleção brasileira em 2017. Ela é sobrinha de Marlisa Wahlbrink, a “Goleira Maravilha”, que fez parte do elenco da Seleção Brasileira nas olimpíadas de Sydney (2000) e Atenas (2004). Maravilha foi convidada para defender o gol da equipe dos amigos do Chico Buarque e Lula.

O jogo: reviravolta e arbitragem polêmica

Do lado de fora de campo, convidados como Frei Betto, o escritor Fernando Morais, os rappers Mano Brown e Dexter, entre outros, acompanharam uma partida movimentada, com muitos gols, reviravoltas e arbitragem “polêmica” do jornalista Juca Kfouri, que marcou um pênalti duvidoso a favor dos amigos do time de Chico Buarque. Ele ainda expulsou os dois capitães das equipes: Lula e João Pedro Stédile, que comandava o time dos veteranos do MST.

O placar foi aberto pelo craque Reinaldo em uma tabela com o ator Chico Diaz. Na comemoração o tradicional punho cerrado. O segundo gol da equipe foi o lance mais discutido da partida. O “Rei” foi derrubado na área em uma dividida de bola. Juca apontou a marca do cal sob os protestos de Stédile. Lula, camisa 13 às costas, correu e bateu para defesa fácil da goleira do Mengão. Sem motivo aparente, Juca mandou voltar a cobrança e na segunda oportunidade o ex-presidente guardou.

O petista, que já tinha cartão amarelo, tirou a camisa ao comemorar o gol e acabou sendo expulso por Juca, que já tinha “colocado para rua” Stédile no lance do pênalti. Tanto Lula quanto o dirigente do MST foram readmitidos para voltar a partida pelo árbitro após os sintomáticos gritos da torcida de “Volta Lula!”.

Lá atrás a goleira Maravilha teve ajuda do ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, destaque da zaga do time dos amigos de Lula e Chico Buarque. No segundo tempo, as entradas dos ex-ministros Celso Amorim, Alexandre Padilha, do senador Lindberg Farias, do vereador Eduardo Suplicy e de Lirinha (Cordel do Fogo Encantado) não surtiram o efeito esperado e a equipe do MST cresceu no jogo.

Os amigos de Chico Buarque e Lula não saíram vitoriosos, porém o que menos importou foi o resultado no evento que tornou-se um grande ato político em defesa da democracia. Assim destacou o artista Chico Diaz, que formou o trio de ataque com Lula e Reinaldo.

Para o ex-ministro Celso Amorim, o evento na Escola Florestan Fernandes foi uma festa popular que representou a vontade do povo brasileiro em reconquistar o poder.

Apesar de começarem melhor na partida, os comandados por Lula e Chico Buarque cederam o empate. No placar 5 a 5. O poeta Chico não se importou com o resultado, pois o importante é que “foi bonita a festa pá…” no dia em que a partida pôde ser descrita pela célebre frase do Magrão: “Ganhando ou perdendo, mas sempre com democracia”.