O olhar feminista nas HQs curitibanas

Com pranchetas e nanquim, mulheres traçam suas narrativas e desbravam um universo majoritariamente masculino





Gibiteca reuniu quadrinistas curitibanas para celebrar o Dia Nacional do Quadrinho. Foto: Júlio Carignano

O olhar feminista nas histórias em quadrinhos (HQs) e o cotidiano de ilustradoras, chargistas, roteiristas e cartunistas foram destaques na programação da Gibiteca de Curitiba em comemoração ao Dia Nacional do Quadrinho (30 de janeiro). Para isso, o espaço – que funciona desde 1982 e é ponto de encontro de amantes das HQs – reuniu sete quadrinistas curitibanas de diferentes gerações.

Elas falaram de seus trabalhos em um ramo majoritariamente masculino e ainda hostil às mulheres, e do machismo que permeia o “universo Nerd”, que engloba quadrinhos, séries, filmes e jogos. A roda de conversa foi mediada pela roteirista Mylle Silva e contou com a participação de Amanda Barros, Celina Pacheco, Má Matiazzi, Márcia Macedo d’Haese, Pryscila Vieira e Raphaela Corsi.

Os principais pontos de discussão foram a estereotipação e objetificação das personagens femininas nas histórias em quadrinhos, de como o machismo se expressa na hipersexualização de heroínas ou vilãs, na existência de personagens mulheres no roteiro apenas para motivar o herói masculino ou no uso da violência contra a mulher como recurso narrativo.

As quadrinistas expuseram as motivações e desafios da profissão. “Muito fácil criticar a mídia, a arte, e dizer que ela só tem desgraça, horror, sensacionalismo. O difícil é você propor outro caminho. É isso que buscamos”, comenta Márcia d’Haese, a mais experiente entre as convidadas, autora de “Smilinguido” e “Mig & Meg”.

Apesar de Curitiba ser celeiro de novos talentos na área, a falta de incentivo à participação de mulheres no ramo foi destacada. “Incentivo para as artes de uma maneira geral sempre foi algo para os meninos, seja para tocar numa banda ou fazer quadrinhos. As mulheres são incentivadas até determinado momento, mas depois são ‘levadas’ às suas ‘tradicionais vida de mulheres’, de donas de casa, mãe, etc”, destaca Mylle, que na oportunidade lançou a HQ “A Samurai: primeira batalha”, que conta a história de Michiko, uma jovem gueixa que decide treinar para ser uma samurai e realizar o sonho de encontrar sua família. Primeiro projeto de quadrinhos de Mylle, a HQ foi viabilizada através de financiamento coletivo.

A mãe da Amely

Junto à falta de incentivo, o preconceito é uma barreira que precisa ser rompida pelas quadrinistas. “Estou prestes a completar 40 anos e frequento a Gibiteca desde os 14. Lembro que a primeira vez que vim aqui fiquei com medo, pois era um ambiente extremamente masculino. Não vou dizer que era machista, pois não sofri isso aqui, mas era totalmente masculino”, diz Pryscila Vieira, curitibana que ficou conhecida por criar “Amely” a primeira boneca inflável feminista do mundo, concebida com “defeitos” de fabricação: pensar e falar.

A personagem foi criada em 2005 após o rompimento de um relacionamento. Do machismo do ex-namorado, que não lhe escutava, Pryscila criou a boneca com nome inspirado no samba de Mário Lago intitulado “Ai que saudades da Amélia”. Aquela Amélia que deixava saudades por ser uma “mulher de verdade”, ou seja, um exemplo de resignação feminina. “Amely foi criada de forma despretensiosa, só depois percebi que não era só um desabafo pessoal, mas ela tinha uma voz universal. Algo que nem fui eu que percebi, mas sim as curadoras das exposições”, conta a desenhista.

A partir daí a personagem passou a ilustrar as páginas dos jornais Metro Internacional e Folha de São Paulo. Em 2015 foi lançada uma edição especial de 10 anos de Amely pela editora Contenido. A boneca se tornará roteiro de uma peça teatral produzida pelo grupo Terça Insana. A personagem será interpretada pela atriz Ellen Roche. Pryscila, que também tem um canal no Youtube, o “Prysciladas”, destaca que no início a tarefa foi “desbravar um universo onde as referências de quadrinhos eram humoristas que usavam a mulher como piada”.

A “Mônica curitibana”

Diferente de Pryscila, que por causa do dom do desenho era incentivada pela família a ser arquiteta, a quadrinista Má Matiazzi ressalta o apoio da mãe para se tornar artista. “Minha mãe mesmo sem saber sempre foi uma feminista, prova disso é que meu irmão teve menos apoio para ser músico do que quando eu quis ser desenhista”.

A grande inspiração de Má é o maior ícone dos quadrinhos brasileiros: Mônica, da turma de Maurício de Souza. “Contraditoriamente, num país machista como o Brasil, o maior símbolo dos quadrinhos é a menina forte que é dona da rua. Não tem como não se identificar com aquela garotinha que batia nos meninos. Eu batia nos meninos quando era pequena”, brinca a quadrinista.

Depois de uma infância lendo a turma da Mônica, Má Matiazzi passou um período longe dos quadrinhos devido ao padrão das HQ de super heróis. “Sempre é aquele homem branco e americano e a mulher tapada. Isso me fez distanciar dos quadrinhos”, aponta.

Criadora da graphic novel “Morte Branca” e da saga “O Feiticeiro” e “O Abismo”, Má iniciou no ano passado seu caminho como roteirista em parceria com Fulvio Pacheco, coordenador da Gibiteca. A dupla fez o roteiro de “A Loira Fantasma de Curitiba”, baseada na notória lenda urbana da capital paranaense.

A HQ foi lançado pela editora Estronho. O roteiro explora a aterrorizante perseguição da loira contra taxistas de Curitiba, como vingança contra o taxista que a assassinou. A revista conta com a arte de 40 quadrinistas convidados nas mais variadas técnicas de ilustração.

Empoderamento e diversidade

Até recentemente eram poucas as mulheres que se aventuravam no mundo das histórias em quadrinhos. Hoje, apesar do cenário já ser diferente, há um longo caminho a seguir, especialmente na questão racial e da diversidade. É o que aponta Rafhaela Corsi, ilustradora que assina seus trabalhos com o pseudônimo “Karmaleão”.

Raphaela: “Busco criar personagens que as meninas possam se sentir representadas”. Foto: Júlio Carignano

Formada em artes virtuais, ela ressalta que a maioria das mulheres deste universo ainda são brancas e heterossexuais, o que não reflete a pluralidade que existe na sociedade como um todo. Rafhaela traz em seu trabalho aspectos de sua espiritualidade e de sua crença na Umbanda.

No cenário estão personagens afrobrasileiros e quadrinhos sobre orixás. “Trago esse aspecto, não pra dizer que é melhor ou pior que outra crença, mas sim buscando essa diversidade. Busco criar personagens que as meninas possam se sentir representadas, seja ela branca, negra, hetero ou não. Com algum tipo de deficiência ou não”.

Pesquisadora feminista, Rafhaela alerta para a deturpação e apropriação de alguns termos pela cultura pop, como é o caso do termo “empoderamento”. “Empoderamento não é só dar o poder para mulher fazer o que quer. Mas não precisar fazer aquilo que nos é imposto, ter um comportamento que querem nos impor”. Ela usou como exemplo o debate sobre o filme Mulher Maravilha. “Quando o filme foi lançado saiu a polêmica da protagonista [Gal Gadot] ser sionista. Isso é complicado, ela faz parte de um grupo que quer se impor perante outro. Vertentes feministas falaram que o filme era feminista, mas nem sempre uma mulher estar numa posição bem sucedida quer dizer que é uma condição feminista”, apontou.

O futuro fora dos padrões

Amanda Barros e Celina Pacheco falaram de suas influências neste início de caminhada no mundo dos quadrinhos. “A inspiração maior é o trabalho de outras mulheres que já estão no ramo a mais tempo. Quanto mais diversas forem as pessoas que estão fazendo quadrinhos, mais diversidade teremos nas histórias”, destaca Amanda, que também é designer da Ursereia – editora independente HQs. “Li muito Mangá, mas depois de muito tempo fui perceber esse lance de representação das mulheres. Depois de um tempo você vê que não está representada ali”, completa.

Celina: “Gosto de criar personagens que fujam deste padrão da loira, branca e gostosona”. Foto: Júlio Carignano

Caçula entre as quadrinistas, Celina ressaltou a influência de seu pai, Fulvio Pacheco, o criador de “A Loira Fantasma”. A adolescente começou a desenhar aos 8 anos e hoje com 14 participa de exposições com o pai. Fã do gênero de terror e gótico, suas personagens buscam fugir dos padrões. “É muita sexualização das personagens ou a mulher sendo motivo de piada. Eu vejo o homem e a mulher como iguais numa história. Gosto de criar personagens que fujam deste padrão da loira, branca e gostosona”.