Durante divulgação da turnê, dupla visitou à comunidade da Vila Torres, na periferia de Curitiba. Foto: Leandro Taques

Por Julio Carignano com fotos de Leandro Taques

Marcos Fernandes de Omena e Cristian de Souza Augusto, ou simplesmente Dexter e Afro-X, são a história viva da extinta Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru. Fundadores do grupo 509-E, eles conseguiram algo que nenhum outro artista no Brasil conseguiu: construir uma carreira musical de sucesso mesmo atrás das grades. Depois de 16 anos, a dupla voltou a se apresentar com a turnê ‘Vivos’, que resgata o legado de 20 anos de história e os clássicos dos dois discos lançados: Provérbios 13 (2000) e MMII DC (2002).

Sem pretensão de traçar novos rumos para o 509-E, os rappers estão celebrando a amizade, o respeito e a trajetória de vidas que se cruzaram em dois momentos: ainda na infância no Jardim Calux, periferia de São Bernardo do Campo (ABC Paulista) e, num segundo momento, naquele que já foi o maior complexo prisional da América Latina. Iniciada em São Paulo, a turnê está percorrendo capitais do Brasil e no dia 11 de outubro chegará à Curitiba. Uma semana antes da apresentação, a dupla esteve na cidade para divulgar a turnê e visitar comunidades em situação de vulnerabilidade social.

Acompanhados dos parceiros da Central Única das Favelas do Paraná (CUFA-PR), Dexter e Afro-X deram um rolê pela Vila Torres, antiga ocupação que já se chamou Vila Pinto. A visita teve uma guia especial: a jovem Nayara Bastos, moradora da comunidade que recentemente foi campeã mundial de Futebol 7 pela seleção brasileira. No início da caminhada pelo bairro, a situação do Rio Belém chamou a atenção, bem como a ponte com o palavra “PAZ”, algo tão buscado pelas comunidades em situação de vulnerabilidade social.

No trajeto pelas ruas e vielas, alguns olhares desconfiados de senhores da melhor idade que tentavam entender o porquê do aglomero e muitos selfies com a juventude da comunidade. O rolê também teve uma pausa para um jogo de cacheta em frente a um botequim e uma parada no salão que faz a moda nas cabeças dos moradores das comunidade. Ao fim da visita pela Vila Torres, os rappers falaram com o Porém sobre essa volta aos palcos depois de 16 anos.

Um retorno, que segundo Afro-X, é o ressurgimento do monstro que estava adormecido. “É uma reorganização de uma história que ficou parada. É um resgate de um legado e da memória dos anos 90. De uma geração da qual somos remanescentes e que fez história no rap nacional. A Vivos é a essência do hip hop, é a amizade, o respeito, o lado familiar que 509-E gerou”, diz Afro-X.

A turnê do 509-E saúda uma geração do rap nacional marcada por canções de forte cunho social e de denúncia das mazelas sociais. Uma geração que teve como principais expoentes o quarteto dos Racionais MCs, grupo que foi fundamental na trajetória de Dexter e Afro-X. Mano Brown e Edi Rock estão no time que ajudou na produção do primeiro disco do 509-E. Uma seleção de craques que reuniu ainda nomes como DJ Hum, MV Bill e Zé Gonzales (Planet Hemp).

Uma geração do hip hop nacional que, segundo Dexter, se contrapõe ao fenômeno que chama de “gourmetização” do rap. “Fazemos um rap que busca instruir e quando você instrui neste país você nem sempre é valorizado. Basta ver o que acontece com o professor no Brasil. O ‘boy’ gosta desse rap gourmetizado, o favela não gosta, pois a vida dele não é essa. Não é maconha todo dia, não é buceta todo dia, não é ouro e carrão todo dia. Não é nada disso, bem pelo contrário”, comenta.

Afro-X acrescenta que junto a música, o 509-E traz um manifesto. “A música nos conecta com qualquer gênero, etnia, credo e com a população que está do outro lado das muralhas. Essa galera que precisa de esperança, de algo que os empodere”, aponta.

“Continuamos sendo a voz dos que não tem voz. Seja o mano ou a mina que está esquecido dentro das favelas de qualquer lugar do Brasil e também as pessoas que estão privadas de liberdade. Independente de qualquer coisa, estamos falando de ser humano, que precisa de autoestima e de um recomeço”, acrescenta Dexter.

Sistema carcerário

Essa ‘voz dos sem voz’ citada pelos rappers foi o gancho que puxou o tema do atual sistema carcerário brasileiro em nossa conversa. Dexter e Afro-X cumpriram, respectivamente, penas de 13 e 5 anos de prisão por assaltos à mão armada. Anos de privação da liberdade que fizeram a dupla refletir sobre a retroalimentação de um sistema prisional que cada vez mais encarcera a população negra das periferias. “Como falar de ressocialização para quem nunca teve socialização. Quando assumimos a responsabilidade de formar um grupo e falar em nome dessas pessoas, ai sim resolvemos nos socializar, pois até então nem socializados éramos”, aponta Dexter.

A dupla é enfática ao afirmar que no Brasil a segurança pública é um negócio lucrativo. “No Brasil se promove propositalmente o caos, ele gera lucro. Não há interesse em ressocialização, nem em política de inserção. Seres humanos custam dinheiro. E esse dinheiro não volta em educação, volta em mais repressão e assim esse sistema vai se retroalimentando”, diz Dexter. “Quando se nega educação, saúde, emprego para as pessoas se cria um exército de pessoas violentas. Aí vem a engrenagem que despeja muito grana no ralo da segurança pública. É um ciclo”, acrescenta Afro-X.

Expoentes do rap nacional, Afro-X e Dexter voltaram a trabalhar juntos depois de 16 anos. Foto: Leandro Taques

No bate papo os músicos também demonstram preocupação com o aumento da violência policial e criticam os atuais governantes. Neste instante peço licença para lembrar que em uma comunidade vizinha da região, na Vila Parolin, protestos nas últimas semanas têm denunciado a morte de quatro jovens pela Polícia Militar do Paraná. Desta vez o interrompido sou eu pela frase curta e direta de Dexter: “E vão morrer muito mais…”.

Ele completa: “As pessoas que estão a frente do país têm legitimado isso. Algo que sempre aconteceu, mas que antes não era na cara dura. A pena de morte sempre existiu na periferia, mas agora está autorizada. Quando o Sergio Moro fez aquele pacote dele e propôs o lance da exclusão de licitude é isso que ele estava querendo legitimar”, diz Dexter sobre a proposta apresentada pelo atual ministro da Justiça que possibilitava a redução ou mesmo isenção de pena para policiais.

O artista volta a criticar políticos que colocam como pauta prioritária o tema da segurança pública. “É só discurso, mero discurso. Esses 10 ou 15% que querem tomar de assalto o país precisam de uma polícia que garanta isso tudo que falamos. Uma polícia que afaste o povo dos lugares onde o povo deveria estar. Que afasta o povo de uma democracia plena”, diz Dexter.

Na avaliação do fundador do 509-E, vivemos ‘tempos sombrios politicamente falando’.

“Esse governo que está aí não nos representa em nada, não representa o povo brasileiro: o povo preto, pobre, da periferia. Ele legisla e trabalha para uma minoria de 10 a 20% que tem dinheiro. Nós não entramos na conta deles. É por isso que seguimos sendo a voz dessas pessoas que não entram nessa conta”, afirma Dexter.

“Erramos…”

Embora contrário ao atual presidente Jair Bolsonaro, o rapper também não deixa de fazer críticas a setores da esquerda. “Erraram. Erramos. Houve um erro estratégico de quem fez uma diferença – todo mundo sabe disso – mas que poderia ter feito muito mais. Poderiam ter feito algo gigantesco. Não há dúvidas que essa política de esquerda, que nos fez ser enxergados como nunca tínhamos sido, também errou”, afirma Dexter.

A opinião do fundador do 509-E assemelha-se com a fala de Mano Brown durante as eleições presidenciais em um comício do então candidato Fernando Haddad. Uma fala a qual Dexter endossa, com uma única ressalva. “Quando o Brown disse ‘volta pra base’ ele estava certo, não está entendendo o que está acontecendo: volta pra base. Acho que aquele talvez não era o melhor momento de falar, pois o próprio Bolsonaro usou aquela fala, o que é uma puta contradição, uma piada, um cara desse pegar uma fala importante de um dos nossos heróis, pois o Brown é revolucionário”.

Recado aos encarcerados

Iniciada na Vila Torres, nossa prosa com o 509-E chega ao fim já em uma pastelaria na área central da cidade, próxima ao local onde aconteceria uma sessão de autógrafos da dupla. Antes da despedida, Afro-X versa sobre a contribuição do rap à cultura de paz, à evolução e ao progresso do país dentro de um processo verdadeiramente democrático. Dexter, por sua vez, manda um recado para a população que está do outro lado das muralhas, privada da liberdade.

“Essas pessoas precisam se manter vivas, pois existe um plano de extermínio delas, de encarceramento em massa, sobretudo do povo preto e da nossa juventude. O que tenho pra dizer é que somos seres humanos capazes de mudança, capazes de sair do crime, de nos mantermos vivos. Eles são muito mais capazes do que empunhar uma arma, carregar uma droga ou acionar um gatilho. Já passei por tudo isso. Eles devem deixar de ser fonte de renda de quem não faz nada e não quer o bem deles. Obviamente que o crime é uma maneira de sobrevivência de muitos pela falta de condições, mas essa maneira também é promovida por um braço do estado que ganha muito dinheiro com isso. O estigma de ter passado por um presídio eles vão sempre carregar, mas se forem capazes de superar o sistema carcerário brasileiro, serão capazes de superar qualquer coisa nessa vida”.

SERVIÇO

509-E Turnê Vivos (Dexter e Afro-X)
Quando: 11 de outubro (sexta-feira)
Onde: Victoria Villa – Av. Victor Ferreira do Amaral, 2291, Tarumã, Curitiba (PR)
Horário: 22h
Classificação: 18 anos
Ingressos: Site Sympla e Loja Bona Park
Informações: (41) 3365-5050