Desde 2015, Lava Jato discutia repartir multa da Petrobras com americanos

Diálogos vazados mostram que “asset sharing” da Petrobras deu o tom da cooperação bilateral com o Departamento de Justiça dos EUA

Deltan Dallagnol. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Pouco antes de assinar contrato para criação de fundação, Deltan Dallagnol e Roberson Pozzobon discutiram criação de instituto para dar palestras anticorrupção
Procurador do DOJ consultou Lava Jato se deveria desistir de ação criminal contra Petrobras
Documentos e diálogos vazados ao site The Intercept Brasil e analisados em conjunto com a Agência Pública revelam que, desde o começo da cooperação da força-tarefa da Lava Jato com procuradores americanos, a multa bilionária a ser paga pela Petrobras ao Departamento de Justiça dos EUA (DOJ) por violação da lei FCPA foi um ponto-chave nas tratativas. O tema esteve sobre a mesa desde a primeira missão dos procuradores americanos e do FBI em Curitiba, em outubro de 2015.

A legislação FCPA, Foreign Corrupt Practices Act, permite que o DOJ investigue e puna nos Estados Unidos atos de corrupção internacional, mesmo que não tenham acontecido em solo americano – basta a empresa vender ações nas bolsas do país. Foi o que aconteceu com a Petrobras.

No segundo dia da visita da missão americana, em 7 de outubro de 2015, às 8:42:04, Deltan Dallagnol compartilhou pelo Telegram, num chat privado com Vladimir Aras, então chefe do setor de cooperação internacional da Procuradoria-Geral da República (PGR), uma matéria do portal Jornal GGN crítica à investigação sobre a Petrobras pelos americanos. A notícia da visita havia vazado para a imprensa, embora a força-tarefa tenha buscado manter sigilo.

Na conversa, Dallagnol avisa a Aras: “Temos que pensar na linha de imprensa quando vier a notícia do 1.6 bi de dólares de multa”.

“Era esperado. Mas sossega. Os cães ladram”, responde Aras.

Em agosto de 2015, o valor da possível multa foi vazado para a Agência Reuters por uma fonte interna da Petrobras, gerando intensa especulação, mas a Petrobras negou.

Em 8 de outubro de 2015, Aras volta a mencionar o valor, deixando claro que a ideia de compartilhamento partiu do procurador Januário Paludo. Já naquela época os procuradores americanos falavam em dar uma porcentagem aos brasileiros. Inicialmente, porém, ofereceram apenas 25% do total: “Achei ótima a ideia de Januario de que a multa de USD 1,6 bilhão (ou são 4 bi?!) que o DOJ pode aplicar à Petrobras seria dividida entre o Brasil e os EUA. Se Patrick Stokes deu sinalização positiva para que o Brasil fique com um quarto disso, tanto melhor. Passarei informe ao PGR, com a ressalva do sigilo”, escreveu em chat privado às 20:56:12.

Além do valor, a destinação do dinheiro também já estava sendo discutida com as autoridades americanas: “Caros hoje tem reunião com americanos 9.30 sobre empresas estrangeiras, inclusive Petrobras. Ontem falamos com eles sobre assets sharing da multa e perdimento associados à ação deles contra a Petro, e em parte desses valores há alguma perspectiva positiva”, escreveu Dallagnol no Telegram aos colegas que participavam do chat “FT MPF Curitiba 2”, em 8 de outubro de 2015. “Asset sharing” significa partilha de ativos, ou seja, divisão de valores recuperados em uma investigação judicial.

As mensagens mostram que, desde àquela época, ele já pensava na criação de um fundo e no financiamento de entidades que lutam contra a corrupção.

“Contudo, precisamos de alguém que se disponha a estudar e bolar um destino desses valores que agradaria a todos, como um fundo, entidades contra a corrupção, o sistema de saúde público, fundo de direitos difusos, fundo penitenciário, órgãos públicos que combatem corrupção, a transparência internacional Brasil ou contas abertas etc”, prossegue Dallagnol. “Minha sugestão é propor uma composição de 5 destinos diferentes, porque o valor é muito alto e dará uma maleabilidade. Se não gostarem de dado destino, basta recompor a divisão. Quem se propõe a estudar possíveis destinos? Isso terá de ser, num segundo momento, se for o caso, levado a outras instâncias, mas é impotante termos boas propostas e com uma justificativa de 5 linhas para cada. Quem se dispõe a fazer isso? É algo bavanisso, uma experiência única de possível assets sharing.”

No final, quem se voluntariou e ficou encarregado do tal estudo – a ser concluído ainda naquele ano – foi o procurador Roberson Pozzobon. “Vai que é tua Tafarel”, respondeu Deltan, quando o colega se ofereceu para liderar a tarefa.

Outros procuradores, que estavam no mesmo chat, se ofereceram para ajudá-lo. “Destino do $$&. – já estou com ideias…”, escreveu Orlando Martello. “Também tenho algumas ideias quanto ao destino dos pila. De alguma forma tem que desvincular do orçamento, senão vira pó”, replicou Antonio Carlos Welter.

Um mês depois, em 4 de novembro, Dallagnol reforçava, no mesmo chat, o pedido a Pozzobon, a quem chama de “Robito”.

“Robito, falei com os americanos hoje e preciso de um prazo para sua proposta, que estudaria, de destinação do dinheiro fruto de assets sharing da colaboração com os americanos. Precisamos ter uma ideia mais concreta do que propor. Paulo e Orlando se propuseram a contribuir, mas preciso que Vc me dê uma deadline. Sugiro dia 15 de novembro, que tal? Nossas novas conversas estarão mais pautadas em possibilidades concretas a partir do estudo de destinação.”

Naquele mesmo dia, Deltan resumiu a Aras a conversa com os procuradores americanos em um chat privado, às 19:08. O advogado Patrick Stokes, então chefe do departamento de FCPA (Foreign Corrupt Practices Act) do DOJ, ofereceu três alternativas aos brasileiros, incluindo devolver o dinheiro para “aplicação em programas contra a corrupção”. Dallagnol questiona se os “programas são realmente bons”, já que o valor é muito alto. “Além disso, eles têm receio de criar precedente e depois outro país, como Nigéria, pedir o mesmo, e devolverem um dinheiro que creem que será desviado”, acrescenta.

Arte: Bruno Fonseca/Agência Pública

Um documento enviado pela Lava Jato ao Supremo Tribunal Federal (STF) no ano passado mostra que a PGR só foi informada sobre a possibilidade de “multas ou confiscos de valor bastante Elevado” à Petrobrás em um ofício em 30 de novembro de 2015, mais de um mês após as primeiras tratativas. Com base nesse ofício, a PGR permitiu que os procuradores “envidassem esforços nos contatos internacionais, com o objetivo de buscar que os recursos de eventual punição fossem revertidos para o Brasil”.

Ao longo das negociações internas e bilaterais sobre a colaboração com o DOJ em relação à Petrobras, o interesse em obter parte da multa aplicada nos EUA sempre foi um ponto determinante, embora os procuradores brasileiros sempre tenham insistido que a Petrobras era uma “vítima” do esquema de corrupção.

No final de 2015, por exemplo, após o rápido avanço das negociações diretas entre o DOJ e os delatores, Dallagnol explica a Aras que pretendia atrasar interrogatórios diretos de delatores pelos americanos para ter melhores condições de negociar a partilha dos valores. “A razão pela qual seguramos até agora é porque estamos em dúvida ainda se vamos facilitar as coisas para eles e porque queríamos negociar a questão de assets sharing”, afirmou Dallagnol em 17 de dezembro.

A discussão continuou, incluindo a possibilidade de uma viagem aos EUA, no ano seguinte, para discutir a multa. O chefe da Lava Jato chegou a contemplar a possibilidade de aconselhar os delatores a não colaborar com a Justiça americana, revelam os chats. A reportagem “Como a Lava Jato escondeu do governo federal visita do FBI e procuradores americanos” mostra, porém, que essa postura jamais foi adotada.

Arte: Bruno Fonseca/Agência Pública
No começo do ano seguinte, as discussões sobre a postura a adotar na negociação continua. Em 6 de janeiro de 2016, Dallagnol fala com Aras sobre uma reunião com a SEC, a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA. “Vc acha que era o caso de chamar o DRCI para a primeira parte da reunião, sobre policy issues, considerando que pode envolver a questão do assets sharing e como realizar isso?”, pergunta. “Acho melhor não chamar o DRCI agora – para não perdermos posições de negociação – mas vou assuntar com Saadi”, responde Aras, no dia seguinte, referindo-se ao delegado da Polícia Federal (PF) Ricardo Saadi, que na época chefiava o DRCI, departamento do Ministério da Justiça que cuida de cooperações internacionais.

Em 8 de agosto de 2017, Aras volta a pedir à Lava Jato cautela com os americanos. Ao longo dos chats, os membros da PGR mostram-se muitas vezes irritados com a postura dos americanos, com atrasos em pedidos de informação e, em especial, dificuldades em obter extradições. Por isso, no começo de 2015 Aras pede que a Lava Jato negue um pedido do DOJ. Dallagnol, por sua vez, intercede a favor dos americanos – e mais uma vez, o argumento é a possibilidade dos valores da Petrobras. “Vlad, entendemos a necessidade de gerar pressão nos americanos e que alguém tem que pagar o pato. Poderíamos colocar a ‘culpa’ em BSB. Contudo, tem algumas coisas que me preocupam muito nesse contexto específico da Petrobras, especialmente a divisão de valores do caso petrobras. Em razão delas, acredito que seria um risco muito alto suspender nesse caso específico, neste momento”, afirma ele no chat “LAVA JATO + SCI” às 12:08:41.

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