‘Tratamento precoce’, a estratégia diversionista do bolsonarismo

Pesquisadores falam sobre os efeitos da utilização de medicamentos ineficazes para tratamento da covid-19. Falsa sensação de segurança prejudica a adesão da população a medidas não farmacológicas como o distanciamento social




FonteGlauco Faria - RBA

Durante a posse do ministro da saúde, em Brasilia 16/09/2020, o presidente Jair Bolsonaro mostra uma caixa do remédio Hidrocloroquina. Foto: Carolina Antunes/PR

Se a CPI da Covid mostrou, até agora, evidências da ação e da omissão do governo federal na condução da pandemia que resultaram em um cenário trágico para a saúde pública brasileira, também trouxe à tona novamente um debate que na maior parte do mundo parece superado: o uso do chamado “tratamento precoce” no combate à doença causada pelo novo coronavírus.

Senadores governistas plantam a versão de que há uma “divisão na ciência” em relação à eficácia de drogas como a cloroquina (CQ), hidroxicloroquina (HCQ) ou ivermectina contra a covid-19. Citam estudos já contestados, dados confusos e tentam estabelecer a relação de supostos baixos índices de letalidade em municípios e estados brasileiros com a eventual adoção dos medicamentos.

Na terça-feira (1º), a comissão escutou a médica oncologista Nise Yamaguchi, que admitiu ser uma “consultora informal” do governo, o que corrobora a possível existência de um “gabinete paralelo” com ingerência sobre o ministério da Saúde e as ações de enfrentamento da pandemia. Na oitiva, enfrentou contestação por parte de senadores como Otto Alencar (PSD-BA) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE), sem apresentar qualquer estudo científico relevante que justificasse a indicação do tratamento precoce.

Já a médica infectologista Luana Araújo, em depoimento dado à CPI na quarta-feira (2), rejeitou a discussão sobre o uso das substâncias. “Essa é uma discussão delirante, anacrônica, esdrúxula e contraproducente. Estamos na vanguarda da estupidez mundial em vários aspectos, porque estamos discutindo algo que não tem cabimento. É igual discutir de qual borda da terra plana vamos pular”, afirmou.

Luana Araújo. Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

“Infelizmente, ainda há muitos que acreditam que a hidroxicloroquina pode tratar a covid-19, mas o FDA (Food and Drug Administration, agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos) não aprovou seu uso para a doença. Não é um medicamento antiviral de ação direta, não pode matar o vírus”, aponta a professora de química e bioquímica da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e presidenta da International Society for Antiviral Research, Katherine Seley-Radtke.

“Alguns postularam que pode haver um efeito na resposta inflamatória, ou seja, a tempestade de citocinas que ocorre quando nossos corpos são invadidos por um vírus como o SARS-CoV-2, mas tem efeitos colaterais numerosos e muito sérios que podem até matar pessoas com problemas cardíacos. O FDA declarou claramente que, se usado, só deve ser administrado sob as ordens do médico em um ambiente hospitalar, para que o paciente possa ser monitorado de perto”, pontua a pesquisadora.

Tratamento sem respaldo

Em 28 de março de 2020, o FDA emitiu uma autorização de uso de emergência para fosfato de cloroquina e sulfato de hidroxicloroquina no tratamento contra a covid-19, mas, com base na revisão contínua das evidências científicas disponíveis, a medida foi revogada em 15 de junho de 2020. A Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu orientação semelhante contra o uso.

“A OMS não recomenda hidroxicloroquina para prevenir covid-19. Esta recomendação é baseada em seis estudos com mais de 6.000 participantes que não tiveram covid-19 e receberam hidroxicloroquina. O uso de hidroxicloroquina para prevenção teve pouco ou nenhum efeito na prevenção de doenças, hospitalização ou morte por covid-19. Tomar hidroxicloroquina para prevenir covid-19 pode aumentar o risco de diarreia, náusea, dor abdominal, sonolência e dor de cabeça”, alerta a entidade.

Marco Santos/Agência Pará
Cloroquina e hidroxicloroquina não têm eficácia contra a covid-19 e podem causar efeitos adversos sérios

Parte dos testes e estudos que justificariam o uso de cloroquina e hidroxicloroquina para tratamento de covid-19 se baseia em testes feitos in vitro, ou seja, em laboratório, ou em situações específicas cujos efeitos não se repetiram quando realizados em seres humanos. Em julho do ano passado, Katherine exemplificou isso em artigo no site The Conversation.

Cientistas na Alemanha testaram a HCQ em diferentes tipos de células para descobrir por que ela não impedia que o vírus infectasse humanos e atestaram que o medicamento poderia bloquear a infecção do coronavírus em células renais do macaco verde africano, mas não nas células do pulmão humano, principal local de infecção do vírus SARS-CoV-2.

Isso acontece porque, nas células do rim do macaco verde, a hidroxicloroquina e a cloroquina diminuem a acidez, o que desativa uma enzima, a catepsina L, bloqueando a infecção. Já em células pulmonares humanas, que têm níveis muito baixos da enzima catepsina L, o coronavírus usa outra enzima, a TMPRSS2, para entrar na célula e se replicar. E como essa enzima não é controlada pela acidez, nem a HCQ nem a CQ podem bloquear o SARS-CoV-2 de infectar os pulmões ou impedir a replicação do vírus.

“É um medicamento antimalárico e também é usado para várias doenças autoimunes, como lúpus e artrite reumatoide. Como mencionei, os efeitos colaterais podem ser fatais. Existem muitos órgãos que parecem ser afetados pela covid, e ainda não sabemos os efeitos de longo prazo do vírus em nossos corpos, e se um paciente tiver doenças subjacentes ou mesmo já tenha sofrido danos do vírus, pode ser muito prejudicial, inclusive letal”, reforça a pesquisadora.

Ela acrescenta ainda que a sensação de “falsa segurança” passada a quem acredita na utilização destes medicamentos contra a covid-19 prejudica a aplicação de medidas não-farmacológicas que combatem a transmissão da doença.

“Apesar de não haver evidências de que a HCQ e outras drogas semelhantes que não sejam antivirais de ação direta curem a covid-19, acho que algumas pessoas ainda mantêm essa esperança e podem usá-la como uma desculpa para não usar máscaras, distância social, serem vacinados etc. Mas parte disso também vem da politização de toda a questão – muitos passaram a acreditar que isso está, de alguma forma, tirando seus direitos. Mas eles foram vacinados contra outras doenças (assim como seus filhos), usam cinto de segurança etc, como as medidas atuais para controlar a propagação de covid-19 são diferentes?”, questiona.

O incentivo de Trump e de Bolsonaro

Boa parte do ambiente vivido pelo Brasil no qual ainda se discute a adoção do chamado tratamento precoce ainda persiste também nos Estados Unidos. A diferença é que o governo nacional do país do Norte, na administração Biden, não estimula ou endossa publicamente o método. Mesmo assim, adeptos do ex-presidente divulgam informações falsas a respeito e cientistas e pesquisadores chegam a ser ameaçados por desmenti-los.

Um site conservador estadunidense que já publicou fake news sobre efeitos adversos de vacinas, máscaras faciais e fraude eleitoral, defendeu que, graças à utilização de hidroxicloroquina e ivermectina, teria havido declínio nos casos de covid-19 na Índia após um grande aumento de casos nos meses de abril e maio.

“A hidroxicloroquina não tem eficácia alguma para covid e há vários ensaios que não mostram nenhum benefício. A ivermectina não foi comprovada e sua indicação é para tratamento, não para prevenção de doenças”, disse a diretora adjunta do Centro de Clínica Global Johns Hopkins ao jornal USA Today. “Portanto, não há fundamento para que isso seja o motivo da diminuição dos casos.”

Segundo especialistas, tudo indica que as novas infecções tenham diminuído em centros urbanos como Nova Delhi e Mumbai, após um pico em maio, pela adoção de medidas de bloqueio e restrição de circulação mais rigorosas desde abril.

Reportagem do jornal The New York Times, de 6 de abril de 2020 destacava que o presidente Donald Trump encorajava pacientes de coronavírus a experimentarem a hidroxicloroquina “com todo o entusiasmo de um incorporador imobiliário”, ainda que tivesse sido advertido por especialistas da força-tarefa do governo a ter cautela em relação à droga pela falta de evidências sobre sua eficácia.

Assim como para o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, a estratégia era fundamental para combater a implementação de medidas de distanciamento social, combatidas pelos dois mandatários desde o início da pandemia. Ambos também insistiam em minimizar os impactos do novo coronavírus e contaram com um exército nas redes sociais para difundir desinformação sobre a covid-19.

Os medicamentos ineficazes e os que estão sendo testados

O professor da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, e pesquisador na área de virologia química Luis Schang explica que a cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina são excelentes antiparasitários, de grande utilidade para ajudar no controle de doenças que afetam muitas pessoas como a malária. “No entanto, nenhum deles é antiviral e nenhum provou ter atividade contra qualquer vírus. A história dos testes dessas drogas como antivirais é muito antiga e há mais de 20 anos eles têm atividade em cultura em laboratório contra vários vírus. Mas ninguém jamais foi capaz de mostrar qualquer atividade antiviral para qualquer uma dessas drogas em qualquer modelo animal, muito menos em humanos”, destaca.

Porém, a defesa do uso desse tipo de medicamento é o tipo de ação que traz consequências à saúde pública. “Agora, há dois problemas em promover o uso dessas drogas ineficazes contra o SARS CoV-2. Em primeiro lugar, cria alguma percepção de que há algo a ser feito para prevenir infecções, ou tratá-las precocemente, além do distanciamento social, uso de máscara facial e vacinas, o que resulta em mudanças de comportamento que aumentam a transmissão e a gravidade da doença”, aponta o pesquisador, endossando uma questão abordada pela pesquisadora Katherine Seley-Radtke.

Pixabay
“Propaganda” sobre tratamento precoce atrapalha a adesão da população às medidas não farmacológicas como o distanciamento social. Foto: Pixabay

“O outro problema é que qualquer medicamento tem algum nível de toxicidade, não importa quão baixo seja. O uso disseminado de medicamentos ineficazes não tem efeito sobre a disseminação do SARS CoV-2 ou a gravidade da covid-19, mas expõe um grande número de pessoas à toxicidade (limitada) dos próprios medicamentos. Quando um ensaio clínico em larga escala, adequadamente projetado e executado, do uso de HC em todo o mundo foi finalmente realizado, aqueles que receberam HC tiveram piores resultados do que aqueles que não receberam. Em outras palavras, o uso generalizado de HCQ resultou em mais mortes, um pensamento preocupante.”

Outro medicamento muito defendido por adeptos do “tratamento precoce” também não encontra respaldo em pesquisas, de acordo com Schang. “Com relação à ivermectina, ainda não temos nenhum grande ensaio clínico de boa qualidade. Dito isso, uma série de estudos clínicos pequenos e limitados publicados claramente não mostram nenhum efeito benéfico. Em vários dos relatórios, os autores discutem que doses mais altas podem ser eficazes ou que outras razões os impediram de observar um efeito benéfico, mas mesmo os resultados desses ensaios são claros – nenhum efeito.”

Entre os medicamentos em teste hoje para tratamento da covid-19, Katherine aponta que há “vários candidatos muito promissores”, mas ainda é preciso aguardar a conclusão dos testes em curso para sua utilização. “Pessoalmente, acho que o medicamento AT-527, da Atea, que está entrando em testes clínicos de fase 3, está mostrando uma promessa incrível – toxicidade muito baixa (não é reconhecido por polimerases humanas como outras drogas nucleosídicas), exibiu uma atividade muito potente e pode ser administrado por via oral (todos em contraste com Remdesivir), e funciona por um mecanismo de ação dual muito particular”, pontua, destacando ainda o Favipiravir e o EIDD-2801. “Existem também vários inibidores de protease e alguns inibidores de entrada que também parecem ser promissores.”