Quando Deborah Colker releu “O Cão sem Plumas”, poema-livro escrito por João Cabral de Melo Neto, a coreógrafa tinha acabado de estrear o espetáculo “Belle”. Era 2014. Ela estava em um táxi e percebeu ali que aquele poema de fôlego serviria de base para sua próxima obra, o que se tornaria a mais brasileira de suas coreografias. Agora, três anos depois, o espetáculo já é realidade. A adaptação está rodando o país e terá apresentação única em Curitiba no dia 1º de novembro, quando ocupará o palco do Guairão. Os ingressos estão à venda.

Com uma carreira sólida, Colker e sua companhia de dança já lançaram, desde 1994, doze obras. “Velox”, exibido pela primeira vez em 1995, fez enorme sucesso, chegando a 55 mil espectadores em apenas seis meses. Depois, em 1997, veio “Rota”, tornando-se outra grande referência entre seus trabalhos. Tanto que até hoje o grupo exibe as duas coreografias.

A ascendência da coreógrafa foi tamanha que em 2009 foi convidada pelo Cirque du Soleil para criar e dirigir um espetáculo. Ela o batizou de “Ovo”. Transportar sua visão para o circo não lhe foi estranho, já que a linguagem circense sempre esteve presente em seu trabalho. Ela também foi uma das responsáveis pela abertura dos Jogos Olímpicos de 2016.

A coreógrafa Deborah Colker. Foto: Cafi/Divulgação.

Ao longo desses quase 25 anos de carreira, a Cia de Dança Deborah Colker se internacionalizou, participando de inúmeras apresentações nos mais importantes palcos do mundo. Nesse sentido, é sintomático que suas últimas duas montagens tenham sido “Belle”, que é baseado no romance “Belle de Jour”, do franco-argentino Joseph Kessel, e “Tatyana”, livremente inspirado em “Evguêni Oniéguin”, de Aleksandr Púchkin. Ambos os textos são clássicos da literatura mundial.

Dessa vez, porém, a coreógrafa escolheu não só uma obra brasileira, mas um poema fundamental da literatura nacional. Quando João Cabral de Melo Neto, em 1950, escreveu “Cão sem Plumas”, ele vivia na Espanha e versou sobre o percurso do Rio Capibaribe à distância. Colker escolheu o caminho inverso. Ela, sua companhia e o cineasta Cláudio Assis, de “Amarelo Manga” e “Baixio das Bestas”, percorreram toda a extensão do rio, em Pernambuco. Filmaram os bailarinos na lama do mangue e trouxeram as imagens para dentro do palco. A simbiose entre imagem em movimento e dança é total, ao ponto de Deborah Colker e Cláudio Assis assinarem juntos tanto o vídeo quanto a coreografia. Toda a apresentação tem setenta minutos de duração, desses há pelo menos cinquenta minutos de projeção.

Nas palavras de Colker, “Cão sem Plumas” é sobre o inadmissível.

Gostaria de começar pelo princípio. Então, por que escolheu “O Cão sem Plumas” para adaptar?

Foto: Cafi/Divulgação

“Cão sem Plumas” e João Cabral foram apresentados para mim nos anos 1980, quando eu era uma jovem com sede de conhecer tudo sobre as motivações de viver. Ali ouvi pela primeira vez que: o sangue de um homem é mais espesso do que o sonho de um homem. Passaram-se anos e “Cão sem Plumas” e João Cabral voltam às minhas mãos no momento em que estreava “Belle”, meu espetáculo anterior. Era 2014 e quando reli o poema foi arrebatador, um soco no meu estômago, e tive a certeza de que precisava desse poema para expressar o que estava no fundo das minhas entranhas: Cão sem Plumas é sobre o inconcebível, o inadmissível.

E a escolha por Cláudio Assis, como se deu?

Cláudio é um amigo de longa data e sempre tivemos uma admiração mútua pelos trabalhos um do outro, ao mesmo tempo em que sempre tivemos consciência também de nossas diferenças. Convidar Cláudio, um pernambucano, visceral, provocador e com uma cinematografia tão importante, seria uma maneira de olharmos juntos para esse poema e sermos conduzidos por João Cabral. Desde o princípio sabia que era importante juntarmos a Dança e o Cinema para dizer esse poema e, claro, a música e o próprio poema. Temos um 4D: dança – cinema – poesia – música. Cláudio não tem medo da realidade, do estranho, do seco, da lama.

Durante o processo de criação, você, Cláudio Assis e a companhia fizeram o percurso do rio Capibaribe em uma residência artística. Nesse período também foram ofertadas oficinas para a população local. Como foi essa experiência?

Nosso trabalho é resultado de 3 anos de um processo de criação e essa residência, para a qual nos preparamos muito, influenciou e enriqueceu muito nosso resultado no palco. Conhecer o rio, os ribeirinhos, a geografia e os homens. Fomos dar oficinas e já não sabíamos mais quem era aluno, quem era professor. Conhecemos o coco, o maracatu, o cavalo marinho, atores, poetas, músicos, bailarinos. Fomos descendo o Rio, vimos a terra craquelada, seca, o Rio pequeno, o Rio crescendo, a lama, a lama, sempre a lama, o mangue, o Rio encontrar o mar, a cidade grande, a favela. A cada cidade depois das oficinas sempre acontecia um sarau com os alunos e os artistas populares, e sempre filmando: tudo na lama. Foi impressionante: o Rio nasce no agreste que naquele momento parecia o sertão: seco, craquelado, sem água para beber ou mesmo lavar as mãos. Em Brejo da Madre de Deus foi a primeira vez que a companhia fez uma residência e foi transformador. Dar a ver: assim os estudiosos da obra de João Cabral definem a sua escrita. Ter colocado os pés no Rio, transformado nossa pele na lama; e ter visto o céu, as pessoas de lá…, modificou todos nós. A construção do espetáculo e dos artistas que participam do espetáculo tomou outra proporção.

João Cabral de Melo Neto e Cláudio Assis conversam em certa medida. Ambos são detentores de linguagens agudas, áridas. Já o balé, em geral, é uma linguagem que tende ao lírico. Como se dá esse contraste? Há contraste?

Quando escolho um tema essa ideia é meu timoneiro. João Cabral-“Cão sem Plumas” não tinha como ser lírico. Esse espetáculo é real e espesso, é pele, fundo e profundo. A dança gosta da beleza e esse espetáculo é trágico e exuberante.

O cinema no teatro e na dança é uma ferramenta largamente utilizada. No entanto, na intensidade que foi feito em “O Cão sem Plumas”, não. Por que seguiu esse caminho?

Já trabalhei com projeção, dessa vez é diferente: é cinema. O filme está contando o poema e invadindo o palco o tempo todo. Filmamos o espetáculo em cada locação. Seguimos a geografia do poema e fomos dançando em cada lugar. O homem-caranguejo e o caranguejo-homem. O Caranguejo foi viajando pelo Rio e pela seca, pela lama, pelo canavial e pelo mangue. Precisávamos de um híbrido: dança e cinema, sem medo de um vencer o outro. Utilizando as forças dos dois para se integrarem com o poema.

Foto: Cafi/Divulgação

Os homens caranguejos, conceito criado por Josué de Castro e alçado ao imaginário popular por Chico Science, estão presentes no balé como metáforas da população ribeirinha. A trilha é assinada por Jorge Du Peixe, Nação Zumbi, além de Lirinha. Ou seja, o Manguebeat está muito presente na obra. O movimento musical e cultural dos anos 1990 ainda é uma forma incontornável de falar de Recife e Pernambuco?

O mangue beat ainda está vivo e dinâmico, e se transformando e continua conectando Pernambuco com o mundo e vice versa. Quando João Cabral fala do Capibaribe está falando de todos os Rios do planeta e quando fala do ribeirinho está falando de todos os ribeirinhos, de todos que vivem à margem. João Cabral, Manguebeat, Jorge du Peixe, Lirinha, Chico Science e Josué de Castro são atuais e universais. Josué de Castro e João Cabral eram amigos e contemporâneos.

Já existem novos projetos? Ou vontades?

Sim, depois de um processo como esse, de três anos, o sangue circula violentamente dentro de cada um.

O Cão sem Plumas
Dia 1º de novembro, às 21h
No teatro Guaíra, na rua XV de Novembro 971 – Centro
Plateia e 1º Balcão: R$ 120,00; 2º Balcão: R$ 90,00
Compras via internet: diskingressos.com.br
Informações: 41 3315-0808