Na era dos smarthphones, sebos mantém atmosfera raiz

Algumas lojas tem se adaptado as novas tecnologias, mas a paixão por livros, HQs e LPs físicos resiste a era digital





Sebos tem se adaptado a era digital, mas sem perder suas características. Foto: Júlio Carignano

Caminho pelas ruas do centro de Curitiba no intervalo de meu almoço em busca de obras de Jack London. Decido parar em um sebo e encontro O Mexicano e Caninos brancos, dois clássicos do escritor estadunidense. Fico no local por algum tempo, monitorando o horário que devo voltar à labuta. Naquele intervalo de tempo, o senhor que cuida do estabelecimento – aparentando seus 70 anos – atende um rapaz a procura de discos de Elton John, enquanto uma mulher oferece um cafezinho para outro senhor também beirando sete décadas de idade. Eles conversam algo sobre a conjuntura política e fazem críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Tomo a iniciativa de bater um papo com o atencioso casal proprietário do estabelecimento. Meu horário já não é acompanhado pelo tradicional relógio, mas sim por um smartphone. Por não ter dinheiro suficiente não levo nenhuma obra de Jack London. Minha resistência ao cartão de crédito inspira o início da conversa sobre a resistência dos “sebeiros” na era digital – nome dado aos proprietários destes espaços de compra, venda e troca de usados. Minha curiosidade era saber como essas lojas tem se adaptado as novas tecnologias e como a rotina destes tradicionais pontos tem sido alterada.

Existem dezenas de sebos no centro de Curitiba e parte deles já utiliza-se das novas tecnologias para vendas online. O Estante Virtual (www.estantevirtual.com.br), plataforma criada em 2005, reúne cadastros de centenas de sebos pelo país. Porém, curiosamente o sebo onde parei no intervalo do almoço resiste a essa lógica, mantendo-se com um “sebo raiz”. “Chegamos a cadastrar livros no Estante Virtual, mas depois de um tempo eles aumentaram taxas e nos obrigaram a vender no PayPal. Tudo que é obrigatório para mim não vale”, diz Oli Antonio Coimbra, o senhor que atendeu o rapaz que buscava discos do Elton John.

Ele e sua companheira, Teresa da Luz Padilha, a senhora que conversava sobre o STF com um cliente, administram o Túnel do Tempo, um sebo que funciona há 10 anos na rua Visconde de Nacar. O casal reúne um acervo de cerca de 20 mil livros usados, especialmente de literatura brasileira e estrangeira, além de romances e livros exotéricos. Os autores clássicos da literatura russa, como Leon Tolstoi, Dostoiévski, Tchekhov, Gogol e Maiakovski, estão entre os mais procurados pelos frequentadores do local. Oli aproveita para me mostrar uma biografia de Josep Stálin e diz que nos últimos dias alguns passaram no sebo em busca de livros sobre a antiga União Soviética. O centenário da Revolução Russa deve ter despertado o interesse de muitos para além dos “memes” ou dos noticiários da TV.

Pergunto à Oli como iniciou no ramo dos sebos e ele me diz que tudo começou com as histórias em quadrinhos, a paixão de muitas crianças nascidas antes da “geração Y”, nome designado pela sociologia para aquelas pessoas nascidas na era digital. Respondo à ele em tom de afirmação: “foram com as histórias em quadrinhos!”. E sou prontamente corrigido: “Não gibis!”, diz apontando um exemplar raro da década de 1930 chamado “Gibi”, que serviu de inspiração para denominar o que se tornariam as histórias em quadrinhos.

Tereza e Oli, casal de livreiros. Na parede algumas raridades dos gibis. Foto: Júlio Carignano

As HQs são o carro chefe do Túnel do Tempo. Por lá os colecionadores podem encontrar gibis dos anos 1930 até os anos 1970; clássicos como “O Globo Juvenil” (1937), “O Lobinho” (1938), “O Gury” (1940), “O Pequeno Xerife” (1950), “Rin tin tin” (1959), “O Fantasma” (1960) e as primeiras histórias com personagens de Maurício de Souza (Turma da Mônica). “Tudo começou por eu ser colecionador de gibi desde criança. Teve um momento, já casado com a Teresa, que falei para ela que não tínhamos mais lugar para guardar tanto livro e gibi, então resolvemos virar livreiros”, conta Oli.

Pergunto sobre a dificuldade de sobreviver nessa fase de digitalização de obras e do acesso à conteúdos na internet e o casal responde que é por “teimosia e paixão”. A internet como opção de busca inviabilizou a comercialização de livros como as barsas e enciclopédias. Essas fontes de pesquisa do passado acabam encalhadas nos sebos. “Esses ali estão mortos, a internet os matou”, diz Oli apontando o dedo para uma pilha de livros em um canto de seu sebo. “Mas nem tudo na internet é confiável”, interrompe Teresa, ressaltando que é a partir disso que muitos ainda buscam os livros físicos como fonte. Seu companheiro intervem novamente.“Pelo menos gasta-se menos papel, se derrubam menos árvores. Mas o que economizamos aqui os pecuaristas compensam desmatando para colocar boi”, ironiza o livreiro.

A essência dos sebos

Me despeço do Túnel do Tempo já fora do intervalo do almoço. Mas como minha procura por Jack London transformou-se em pauta, rumo à outro sebo. Saio da Visconde de Nacar e “quebro à direita” na rua Saldanha Marinho. Ando quatro quarteirões e chego até o Acervo Almon, onde confirmo que os sebos tradicionais seguem sendo espaço de resistência dos literários e ponto de encontro de colecionadores. Abordo o proprietário do estabelecimento, que curiosamente estava catalogando livros para o site da loja. O Acervo Almon tem uma página na internet. Seria esse um sinal de que o local já não é um “sebo raiz”? Diante da dúvida indago o livreiro sobre qual seria a “essência de um sebo”? Ele inicia a resposta me apontando outra mudança de grande parte das lojas da capital paranaense.

“Sebos mesmo, em sua descrição, restaram poucos”, aponta Claudemir Monteiro. Foto: Júlio Carignano

“Sebos mesmo, em sua descrição, restaram poucos. Muitos já trabalham com livros novos à ponta de estoque. Dessas dezenas de sebos que vemos por ai, apenas uma meia dúzia deve trabalhar somente com usados. E o legal do sebo é você encontrar livros com 50, 60 anos. É uma aventura para quem vende e para quem compra”, diz Claudemir Monteiro, proprietário do Acervo Almon.

Peço para Claudemir me apresentar o espaço. Nele está uma infinidade de livros, CD’s, LP’s, gibis, partituras e utensílios raros. O comerciante conta com uma clientela fiel, na sua maioria professores, poetas, escritores e músicos. Eles socializam como se fizessem parte de uma espécie de clube. “Houve uma redução grande da clientela nos últimos anos. Os tempos são outros, não só para os sebos. Já ganhamos muito dinheiro na época de ouro dos sebos, mas foi aumentando o número de lojas e depois veio a internet. Tudo isso contribuiu”, aponta.

Apesar das dificuldades, Claudemir tem se adaptado sem perder as características de um sebo tradicional. Além do site, sua loja também tem cadastro na Estante Virtual. A fórmula para se manter: prazer de fazer o que gosta. “São quase 30 anos trabalhando nisso, como largar de um dia para o outro? Tem meses que você vê a viola em cacos, mas a gente sempre aposta que as coisas vão melhorar. Tem sempre essa incerteza, assim como a incerteza se irão chegar materiais novos na loja para troca, compra. Mas sigo pelo prazer e por ainda ser meu ganha pão”, diz o sebeiro.

Garimpeiros

Em sua loja os livros mais procuradores são os livros de história, filosofia e psicologia, especialmente obras que não tiveram lançamentos novos dos autores. “Certa vez uma psicóloga do Rio Grande do Norte chegou na loja e viu as obras da área e começou a empilhar os livros. Comprou vários pois disse que a muito tempo procurava por esses títulos. Curiosamente ela veio para uma festa aqui em Curitiba e acabou passando pela loja. Ela reuniu tudo que queria e acabei despachando por correio a pilha”, conta o administrador do Acervo.

André Braz é um frequentador assíduo de sebos. Foto: Júlio Carignano

Essa busca por raridades motiva os aficionados pelos sebos. O engenheiro André Braz é um deles. Assim como eu procurava Jack London, André aproveitava seu intervalo de almoço para “garimpar”. Sua preferência atualmente são os shows em Blu-ray, em especial do rock da década de 1980. “Sou viciado em sebos, quem gosta, gosta muito. Para quem quer comprar cultura o acesso é muito fácil e os preços bons”. Mesmo assinando plataformas digitais de video sob demanda, como Netflix, tem muita coisa que prefere ter em mãos. Além das apresentações musicais, ele costuma buscar por biografias. “Uma biografia lançada pelo valor de R$ 150, por exemplo, você espera um ou dois meses e acaba encontrando por R$ 40 no sebo”.

Os sebos também servem para que gerações mais novas tenham contato com obras clássicas que não foram digitalizadas, que não passaram por novas edições ou as quais os conteúdos estejam incompletos na internet. “Mesmo tendo muito conteúdo online, os preços ainda não são tão atrativos para competir com os livros físicos, ainda mais os usados. A vantagem dos sebos é que você pode encontrar livros raros cujas edições já estão esgotadas”, diz Taynan Lima Pierobom. A jovem aponta a vantagem de poder fazer trocas de livros. “Gosto de ir nos sebos para trocar os livros que eu tenho e que sei que não vou ler de novo. Acho legal isso de fazer os livros “rodarem” por aí e passar por várias pessoas”.