Em maio, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) apresentou ao Conselho Superior do Cinema o relatório de uma Consulta Pública com uma série de recomendações para a regulação dos serviços de vídeo sob demanda ou “VOD” (video on demand). O documento orienta que serviços como o Netflix, Google Play, Amazon Prime Vídeo, entre outros, sejam obrigados a disponibilizar uma cota de pelo menos 20% de produções nacionais em suas grades.

A adesão de usuários a esses serviços não para de crescer no Brasil. Segundo a Ancine, existem 44 serviços de vídeo sob demanda ativos no mercado brasileiro. A estimativa é que 49% dos usuários de internet utilizem algum deles, percentagem similar a países como EUA, Canadá e México. O crescimento deste mercado assemelha-se ao processo de evolução do mercado de TV por assinatura a partir de 2011. Desde a implantação da Lei 12.485, que regulou os serviços de TV paga no Brasil, a quantidade de produção independente licenciada para esse mercado saltou de 137 em 2010 para 1.345 em 2015. No mesmo período o número de programadoras brasileiras cresceu de seis para 43.

Devido à rentabilidade do negócio, a Ancine orientou em seu relatório um marco regulatório aos moldes da TV paga onde cotas nacionais são obrigatórias desde 2011. Na avaliação do órgão, aliado ao crescimento de assinantes da TV paga (de 12,7 mi em 2011 para 19 mi em 2015), a regulação do setor proporcionou a difusão de costumes, crenças e hábitos do povo brasileiro.

Porém o relatório encomendado pelo então presidente da Ancine, Manoel Rangel, não agradou as empresas que oferecem o serviço e que hoje estão muito aquém da cota. O Netflix, por exemplo, VOD mais popular no Brasil, dispõe de apenas 0,8% de produção nacional em seu acervo. O Google Play atualmente é o streaming que mais se aproxima da cota sugerida com 14,3% de produção nacional.

Condecine

Outro ponto de divergência para as empresas e que está previsto nas recomendações do relatório é o pagamento da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), vinculado ao Fundo do Setor Audiovisual (FSA). Para a Ancince, a cobrança da taxa seria uma forma de garantir estabilidade financeira e segurança jurídica ao mercado audiovisual nacional.

Em 30 de agosto, o ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão propôs ao Conselho Superior de Cinema que a ideia das cotas nacionais para os VOD seja desconsiderada e também voltou atrás na ideia de cobrança do Condecine ao segmento. Na mesma reunião foi estabelecido um prazo de 75 dias para que um grupo de trabalho apresente um esboço de uma medida provisória ou projeto de lei para o setor, mas que exclua a cota de 20% e outras obrigações.

Para o ministro, medidas “restritivas” neste momento prejudicariam a entrada de novas empresas de um setor que dá seus primeiros passos no mercado brasileiro, bem como maiores investimentos na área. Outra justificativa utilizada por Leitão é que as companhias que trabalham exclusivamente com VOD já passaram a pagar desde janeiro o Imposto Sobre Serviços (ISS) aos municípios onde operam os serviços.

Redução de grade

Apesar da polêmica gerada, as cotas de telas não são nenhuma novidade para o setor audiovisual em países com uma cadeia desenvolvida. “Isso já existe em países como Canadá, França, Inglaterra e o próprio Estados Unidos. A cota de tela é uma realidade em qualquer país que tenha uma cadeia audiovisual desenvolvida”, esclarece Daniel Pereira, diretor da Associação de Vídeo e Cinema do Paraná (AvecPR). Para ele, a ausência da cota reduz a perspectiva de encaixe na janela de programação, especialmente aos produtores independentes. “Para qualquer produtor seja na esfera regional ou nacional é sempre ruim perder parte da janela de exibição. Porém não é simplesmente os 20% em discussão, pois a recomendação do relatório também prevê que metade disso seja feito por produtoras independentes”.

É nesse ponto específico que a proposta da cota nacional converge com o pagamento do Condecice, que é revertido ao financiamento de produtoras independentes para incentivo da indústria audiovisual nacional. “Não tem como dissociar a questão da cota de tela com o Condecine, pois ele está vinculado ao Fundo Setorial do Audiovisual, que são modelos de financiamento de parcerias”, completa.

Pereira comenta que independente da fonte é necessário que o setor independente do audiovisual tenha um financiamento previsto em um marco regulatório. “Se não há interesse do governo que haja essa integração dos sistemas de streaming com a Condecine por conta do crescimento do mercado é necessário que exista tanto a cota quanto um imposto específico que seja convertido em produção nacional”.

Mesmo sem um estudo de impacto da Condecine no mercado nacional, é fato que várias produtoras aumentaram sua capacidade de produção com a reversão do imposto ao setor. A O2 Filmes, uma das maiores produtoras do mercado brasileiro passou de 30% para cerca de 95% de produção de conteúdo após a implantação da Condecine. “Nas produtoras regionais houve um aumento da capacidade de produção das empresas, na sua maioria produtoras independentes que trabalham com conteúdo”, afirma o diretor da AvecPR.

Para Daniel Pereira, o atual momento do cenário do audiovisual independente é de luta para manutenção de conquistas. “A Codecine é um fato, ela dificilmente será revogada. Obviamente que o processo político influencia no setor, dependendo da linha ideológica de cada governante. Temos conquistas que foram batalhas ao longo do primeiro mandato do ex-presidente Lula e hoje brigamos pela manutenção delas. A gente briga pelo não sucateamento do setor”.

Liberalismo X Protecionismo

Para Vander Colombo, produtor independente em Curitiba e Cascavel (Oeste do Paraná), a resistência às cotas de tela está na vertente do liberalismo econômico que pretende combater o ‘protecionismo’. Ele critica essa visão. “Nenhum mercado se firmou dentro do próprio liberalismo sem antes se firmar e fortificar na proteção. Há uma mudança nos hábitos do brasileiro que vem consumindo mais filmes nacionais e, por conseguinte, os produtores têm feito mais filmes que se adequam a essa demanda”, comenta.

Colombo destaca que há poucas leis de incentivo cultural no Brasil. “Praticamente todas funcionam em regime de mecenato. Ou seja, o empresário escolhe em qual projeto investir, e logicamente esperando retorno de visibilidade. Normalmente prefere projetos que tem maior facilidade e de rápido retorno. Os aspectos artísticos e culturais normalmente ficam em segundo plano. Perder um fomento ao cinema independente hoje é se desfazer de mais de um dos poucos oásis nesse meio, que não tem grandes distribuidoras e canais de televisão por trás”.

Soberania nacional

Para o cineasta Antônio Junior, da Grafo Audiovisual, a importância das cotas nas janelas do audiovisual é uma questão superada e será uma questão de tempo a adaptação para o setor de VOD. “Depois da Lei do Cabo que revolucionou a TV fechada e, ao contrário do que muitos diziam, elevou muito a qualidade das produções exibidas, agora creio que é questão de tempo para ser estipulada uma cota para o VOD. Não tem por que ficarem de fora”.

Ele destaca que cota é algo bom para toda cadeira produtiva do setor, já que foi criada uma estrutura principalmente através do Fundo do Setor Audiovisual. “O Condecine se tornou uma das formas mais eficientes em todo o mundo para que a própria cadeia produtiva se retroalimente. Com o Condecine temos o FSA que é o principal financiador da produção de conteúdo para TV e Cinema”.

Antonio Junior acrescenta que o FSA gerou um novo paradigma para o setor que cresce bem acima da média nacional. “O setor audiovisual já está à frente de diversos outros setores como: têxtil, celulose, farmacoquímico. É um setor que gera emprego, distribui renda, com impacto ambiental muito baixo e que está diretamente atrelado a soberania cultural do país”.