Verdades absolutas versus doutrinação

Profissões, conhecimentos, saberes, leis e até a ciência estão sendo questionadas. Os poderes no Brasil, inclusive, entraram em guerra e judiciário e legislativo precisaram de algumas sessões para decidir quem pune quem





Foto: Pedro Ribas / ANPr / Fotos Públicas

* Letania Kolecza

A sociedade está passando por um período de quebra de paradigmas e tudo e todos estão sendo colocados em xeque. Nações estão elegendo políticos que se apresentam como não sendo políticos ou ainda com concepções que já haviam sido abandonadas, como por exemplo, a construção de muros que separam indivíduos.

Profissões, conhecimentos, saberes, leis e até a ciência estão sendo questionadas. Os poderes no Brasil, inclusive, entraram em guerra e judiciário e legislativo precisaram de algumas sessões para decidir quem pune quem.

A escola, que nada mais é do que a amostra do todo, também está sendo questionada. Currículos, resultados e claro, seus profissionais viraram o foco e a moda agora é denunciar conteúdos e professores. Há, inclusive, quem acredite que a criação de plataformas ou outros instrumentos para “denúncias” possa representar um serviço à sociedade. Afinal, “doutrinação é crime”.

Contudo, antes de qualquer coisa, pergunto: o que é crime e quais são os mais praticados no Brasil?

O que entende-se como doutrinação? Quando o saber deixa de ser um conhecimento e passa a ser um conteúdo passível de monitoria para averiguação? Qual a real preocupação em monitorar temas que fazem parte do cotidiano da sociedade?

Enquanto pedagoga terei cada vez mais dificuldade em convencer meus professores a trabalhar como previsto na base curricular nacional o conteúdo família. Afinal, poderão ser acusadas de propagar o casamento homoafetivo ao aprofundarem a discussão sobre a constituição familiar de suas turmas que certamente indicarão o que o portão da escola mostra: duas mães, ou dois pais, chegando para pegar uma criança que um casal hétero rejeitou. Enfatizo: de forma criminosa, negligenciando ou abusando.

Também se sentirão incomodadas de trabalhar corpo, apesar do crime pedofilia estar presente em todas as escolas, sendo na maior parte das vezes resultado de uma violência praticada por um membro masculino (hetero) da própria família.

E quem vai querer pesquisar com seus alunos o tema trabalho se é histórico que mulheres desempenham as mesmas funções e ganham menos? Serão acusadas de feministas?

O pior é ver que esta “anti-doutrinação” é tão perversa que se preocupa em não permitir que o conhecimento seja acessado para evitar crimes. Mas permite que o dito estado laico seja deturpado e que páscoa e autos de natal ocorram anualmente nas escolas, sem que seja questionado em que base curricular este conteúdo está inserido. Tampouco questionam o sentido de se referendar apenas uma matriz religiosa, sem qualquer menção às demais, num total desrespeito aos demais credos . Ou alguém tem dúvida que agora 90% das escolas estejam decorando suas portas com enfeites natalinos e ensaiando música em louvor à data do menino Jesus ? Aguardem os convites para as apresentações. Qual o valor acadêmico ou cidadão está amparado estas práticas? Serão também denunciadas por ferirem o estado laico? A doutrinação religiosa?

Percebo esta monitoria como uma afronta à educação, ainda mais se analisar o quanto é ilegítima, pois é válida apenas para determinados temas. Algumas verdades permanecem como dogmas, em que “ a minha verdade pode, a sua não”. Portanto, é pertinente o questionamento de qual é o limite do conhecimento e da doutrinação. E o pior, pra mim, o crime está em perpetuarmos uma sociedade machista, homofóbica e racista, a mesma que espanca, exclui e mata sem qualquer respeito ao outro e sem qualquer humanidade.

* Letania Kolecza é mestra em educação, professora universitária e da rede pública de ensino.