“Não temos nome e quando temos não somos reconhecidas por ele”

Fundadora de ONG em Cascavel fala dos problemas enfrentados pela população transexual





Marcia Ferreira Leite Vilela, fundadora da ONG Acolher. Foto: Daniella Barth

Por Daniella Barth

“A morte não ocorre apenas fisicamente, a gente morre cada vez que percebe que não pode sair durante o dia, nem ir ao mercado. Se morre por não poder ir a uma unidade de saúde e ser tratada de acordo com a sua identidade de gênero. Isso nos mata aos poucos”. A afirmação é de Marcia Ferreira Leite Vilela, 39 anos, mulher transexual que passou pela transição aos 14 anos.

Empresária com formação em auxiliar de enfermagem, Marcia é militante da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e fundadora da ONG Acolher, criada no início deste mês em Cascavel, no Oeste do Paraná. O objetivo da organização é atender a população transexual por meio de orientações, capacitações, palestras, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, atendimento de psiquiatria e saúde mental. A ONG também atuará em parceria com órgãos de Segurança Pública, como a Delegacia da Mulher.

Em entrevista ao Porém, Marcia Ferreira falou sobre a criação da ONG, seus objetivos e os principais problemas da população, entre eles a precariedade no atendimento,  desconhecimento da questão da transexualidade, o desrespeito a identidade de gênero e as violências física e psicológica.

Confira a entrevista.

O que é a Ong Acolher e como surgiu a ideia?
Marcia: A ONG surgiu para levar informação até a população por meio das palestras. Foi muito perceptível a falta de conhecimento sobre diversidade de gênero. E isso significava precariedade nos serviços e desrespeito com a identidade de gênero de todas as pessoas transexuais. As pessoas acham que é tudo a mesma coisa e acabam tratando os transexuais como lésbicas ou gays, por exemplo. Foi então que eu e a Hayana Ramos, que é psicóloga e sempre me empoderou e incentivou a falar sobre a transexualidade, decidimos criar a ONG Acolher, com esse foco principal na população travesti e transexual, atuando na promoção de direitos dessas pessoas. Apesar de ter esse público como prioridade, a ONG é aberta para a população em geral e desenvolve trabalhos na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, mas tentando quebrar esse estigma de que apenas a população LGBTT está vulnerável a essas doenças.

Como funciona o atendimento?
Marcia: O intuito é atender a população em geral, todos que quiserem se informar sobre essas temáticas serão bem-vindos, por isso dizemos que a função da ONG é justamente acolher. Inicialmente a ONG está disponibilizando atendimento psicológico às pessoas LGBTTs, pessoas que vivem com HIV e seus familiares, mas também fechamos uma parceria com a Delegacia da Mulher para prestar esse atendimento às mulheres que sofreram violência.

Vamos promover capacitações, reuniões, palestras e rodas de conversa sobre sexualidade, identidade de gênero e assuntos que permeiam a vida das pessoas LGBTTs. Atuamos ainda na área da prevenção de doenças como o HIV e temos um espaço específico dentro da sede da ONG para esse atendimento. Nosso objetivo é incentivar a população em geral a realizar exames das DSTs, para que o tratamento seja feito sempre o quanto antes, evitando assim maiores complicações por conta das doenças. Contamos com o apoio de uma farmacêutica e um médico especialista em psiquiatria e saúde mental que estarão a disposição para contribuir com as demandas da ONG.

Como foram os primeiros encontros e capacitações?
Marcia: Foram ótimos. A capacitação foi feita com a equipe interna da ONG para entender melhor o nosso projeto. E a reunião foi feita para aproximar todas as mulheres que estão envolvidas com a ONG, independente da sexualidade ou identidade de gênero. Foi bem interessante porque incentivamos o diálogo com as mulheres transexuais mais idosas aqui da nossa região que são pouco conhecidas pelas militantes mais novas da causa. Então a reunião teve esse objetivo de estreitar os laços entre mulheres

Além da falta de conhecimento da sociedade sobre a transexualidade, quais as principais dificuldades da população trans?
Marcia: O reconhecimento da sociedade. Nós não temos nome e mesmo quando temos não somos reconhecidas por ele. O que conta para a sociedade é o sexo biológico. E esse é o resultante de toda a violência que sofremos. Não sermos reconhecidos pela nossa identidade de gênero.

A violência contra transexuais e travesti é grande. Como é a situação em Cascavel e região?
Marcia: No Brasil a violência contra as pessoas trans e travestis é um fator realmente aterrorizante. Ao que se sabe em 2017 foram 179 assassinatos de travestis ou transexuais, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e o que mais assusta é que todos esses casos foram com requinte de crueldade. Além disso, em um ano dessas estatísticas, apenas uma pessoa foi presa, que foi o “Caso Dandara”. Mas isso apenas porque a notícia teve repercussão nacional e internacional, porque quando o crime não tem cobertura da mídia ele é simplesmente esquecido e nada se faz para encontrar e punir os culpados.

Em Cascavel não temos relatos de muitos casos de violência física, nossa maior problemática é a violência psicológica. Porque a morte não ocorre apenas fisicamente, a gente morre cada vez que percebe que não pode sair durante o dia, nem ir ao mercado. Se morre por não poder ir a uma unidade de saúde e ser tratada de acordo com a sua identidade de gênero desde a recepção até o atendimento médico. Isso nos mata aos poucos.

Outra violência é não encontrar aqui na nossa região endocrinologitas dispostos a tratar pessoas trans. E o fato de não conseguirmos emprego além de áreas que nos estigmatizam por conta da transexualidade, como exemplo dos homens trans que trabalham como motoboys ou serventes de pedreiro independente de suas formações. E das mulheres trans que por não conseguirem empregos formais acabam recorrendo a prostituição. Então a forma de violência que sofremos aqui em Cascavel e na região é essa violência velada, mas que nos mata pouco a pouco a cada dia.

ONG atuará em parceria com órgãos de segurança pública, como a Delegacia da Mulher. Foto: Daniella Barth

No setor público o que mais afeta a vida das pessoas trans é o desamparo na área da saúde?
Marcia: Com certeza, infelizmente apesar dos inúmeros problemas que temos em outros setores públicos temos que pensar que sem saúde não temos vida. E essa falta de atendimento apropriado às pessoas trans acaba saindo muito mais caro para o Governo. Porque a pessoa trans que faz a hormonização, sem acompanhamento médico e de forma inadequada, pode ter graves problemas no fígado e pâncreas, pode ter trombose e até mesmo sofrer um AVC. E quem vai custear isso? Na maioria das vezes a saúde pública. Então não é muito mais fácil investir numa política de prevenção desses problemas? E essa é inclusive uma das articulações que a ONG tem feito com a Prefeitura de Cascavel. Levar conhecimento para quem atende a população LGBTT sobre identidade de gênero e sexualidade, e esperamos que o resultado seja um tratamento adequado e mais humanizado à essas pessoas.

Quais as expectativas da ONG a curto e a longo prazo?
Marcia: Nesse primeiro momento nosso foco tem sido o empoderamento das pessoas transexuais e a disseminação de informações sobre essa temática para sociedade em geral. Nosso objetivo é que as pessoas trans sejam de fato incluídas na sociedade, tenham acesso aos seus direitos. E esse empoderamento vai despertar nelas a vontade de voltar a estudar e de lutar para ter mais oportunidades na vida. E até na própria aceitação de si mesma. A longo prazo nós esperamos que a ONG conquiste um status de credibilidade e seriedade em Cascavel, pois nós sentimos que muitos ainda não levam a sério nosso projeto, principalmente quando se fala em travestis e transexuais, por exemplo.

Além disso, é claro, temos objetivo de dar apoio a população em situação de rua, tendo como prioridade as pessoas LGBTTs que se encontram nessa condição ou em situação de vulnerabilidade por causa da dependência química.  Já tivemos algumas conversas com parceiros que pretendem contribuir para efetivar esses objetivos, mas ainda estamos agindo no sentindo de solidificar o nosso projeto e depois os meios necessários para alcançar esses fins. Esperamos conseguir apoio na área de direito para que possamos defender e cobrar judicialmente a efetivação dos nossos diretos. Porque inclusive sofremos violência por parte da própria segurança pública quando vamos a delegacia prestar queixa. Eu já fui muito desrespeitada e sei que isso acontece com praticamente todas as pessoas trans.

Marcia Ferreira: “Esperamos um tratamento mais humanizado às pessoas trans”. Foto: Daniella Barth

Como as pessoas podem contribuir com a ONG?
Marcia: Estamos aceitando a ajuda de quem puder contribuir, os trabalhos só estão começando e teremos muito o que fazer para alcançar nossos objetivos. No momento nossas maiores necessidades são em torno de alguns materiais que vamos utilizar bastante em nossas reuniões, que são materiais administrativos. Papéis, canetas, pranchetas e tinta para impressora. Então se alguém puder ajudar com isso, ficaremos muito agradecidos. Além disso, também nos colocamos à disposição para receber doações de roupas, calçados e até alimentos que possamos servir em nossos encontros. Também estamos aceitando ajuda de profissionais da saúde e da área do direito, como havia mencionado para contribuir com questões mais específicas da população LGBTT.

Mais informações

Aos que quiserem maiores informações, a ONG Acolher está localizada na Avenida Brasil, 9588, bairro Coqueiral, Cascavel (PR). O contato pode ser feito pelo telefone (45) 3040-0761 ou pela página no Facebook: facebook.com/ong.acolher.52.