Repousa sobre o país um cadáver. E as balas que tiraram sua vida já doem tanto quanto as chagas que procuram encontrar em seu corpo gelado. Colocam o dedo em sua moral em busca de hematomas em seu comportamento que possam justificar um rótulo desertor. Mas só revelam a platéia o imenso abutres que são para nossa sociedade, para nosso progresso.
Não há berço esplêndido em nossa pátria, mas um contínuo esforço para executar, novamente, a filha que não fugiu à luta. Crime duplamente qualificado, pois, assim como aqueles que dispararam contra o sonho de justiça e sobrevivência de milhares e milhões de brasileiros, contam com a impunidade de poder alvejar a honra alheia sem correr o risco de serem punidos. Com uma agravante: sequer têm a preocupação de esconder suas digitais da vista de todos, pois teclam à luz do dia, diante de prints e testemunhas, na certeza de que possuem como habeas corpus o direito a exprimir opinião a la roleta russa.
Do lado de cá, sem escudo, sem colete a prova de intolerância, assistimos o penhor da igualdade sendo tolhido conforme o interesse de quem ergue a pena ou o smartphone. A pátria amada é corroída por párias que se escondem diante do tremular de nosso pendão.
Mas o corpo da deusa ébano enclausurado em seu frio ataúde permitiu raiar a liberdade no horizonte do Brasil. Os punhos se erguem, o levante popular clama e as vozes atônitas dos últimos tempos rasgam a escuridão trivial que enterra essa nação.
É necessário que aqueles tenham compaixão em seu sangue, compartilhem do vermelho ideal deixado por Marielle: da diversidade de cores e credos, da pluralidade que se desvenda, da variedade que se aflora. E que do Acari, como do Ipiranga, o brado retumbante de um povo diariamente crucificado possa ressoar sobre essa gente.
