130 anos da Lei Áurea: O retrocesso no Brasil em razão da aprovação da Portaria 1.129/2017





Foto: Sérgio Carvalho/MTE

Vinícius Gozdecki*

A Lei Áurea, sancionada em 1888, completou 130 anos, em 13 de maio de 2018. Contudo, quem imagina que a escravidão já acabou está completamente enganado. Infelizmente marcas conhecidas, como, por exemplo, Nike e Apple, já foram denunciadas em razão de utilizar trabalho escravo.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988, promulgada em meio aos ventos neoliberais, assegurou o direito ao trabalho, reconhecendo-se o dever de trabalhar, a liberdade de trabalho, bem como o direito ao trabalho. No dia a dia observa-se que o princípio da dignidade da pessoa humana, também assegurado na Constituição Federal, é desrespeitado nas relações laborais, como ocorre, a título ilustrativo, nos ambientes em que há trabalho em condições análogas às de escravo, assédio moral e sexual, discriminação de gênero, entre outras situações degradantes.

Um dos principais objetivos do trabalho decente é a eliminação do trabalho em condições análogas às de escravo. Não há como abordar que há trabalho decente quando há presença de trabalho escravo. Nos países em que há constatação desde modelo é notório o retrocesso social. Brito Filho ensina que:

Antítese do trabalho decente, ou, para ser mais preciso, do trabalho digno, o trabalho em condições análogas de escravo, também chamado, simplesmente, de trabalho escravo — essa forma simplificada de denominar este ilícito será explicitada no Capítulo II, eliminando compreensão incorreta —, é uma prática que desafia, ao longo dos tempos, no mundo e no Brasil, a sociedade e o Estado, sendo manejada até hoje, com frequência injustificável, em diversas partes do planeta.

A ameaça aos direitos fundamentais resta declarada quando há trabalho em condições análogas às de escravo, uma vez que não há erradicação da exploração, bem como não há avanço nas políticas públicas de proteção social.

Este modo de exploração do trabalho humano possui uma visão contemporânea, conforme consta da redação do artigo nº 149 do Código Penal, pois trata de jornada exaustiva e também de restrição à locomoção. Além desses modelos, pode-se dizer que o trabalho escravo caracteriza-se também quando há fornecimento inapropriado de água e alimentação, falta de sanitários e alojamentos sem condições de habitação.

Piovesan ensina que há trabalho escravo quando há violação de direitos fundamentais, “como o direito a condições justas de um trabalho que seja livremente escolhido e aceito, o direito à educação e o direito a uma vida digna”, assim, “viola sobretudo a ideia fundante dos direitos, baseada na dignidade humana, como um valor intrínseco à condição humana”.

Em 16 de outubro de 2017 foi publicada, no Diário Oficial da União, a portaria nº 1.129 do Ministério do Trabalho, a qual trata “sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao trabalhador”, após resgate em razão de fiscalização do Ministério. A publicação ocorreu no sexto dia após o governo exonerar André Esposito Roston, coordenador de combate ao trabalho escravo do Ministério do Trabalho.

Com base na portaria supramencionada, o trabalho forçado é verificado como “aquele exercido sem o consentimento por parte do trabalhador e que lhe retire a possibilidade de expressar sua vontade”; jornada exaustiva é a “submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria” e condição degradante é “caracterizada por atos comissivos de violação dos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, consubstanciados no cerceamento da liberdade de ir e vir, seja por meios morais ou físicos, e que impliquem na privação da sua dignidade”.

Conforme consta do texto da referida portaria, condição análoga à de escravo verifica-se quando o empregado for submetido “a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntária”; quando ocorrer “o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”, sendo caracterizado, assim, isolamento geográfico; “a manutenção de segurança armada com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”, bem como quando ocorrer “a retenção de documentação pessoal do trabalhador, com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho”.

Ademais, a portaria elimina a autoridade e a autonomia dos fiscais do Ministério do Trabalho, tendo em vista que a atuação deveria ocorrer em conjunto com policiais, os quais deveriam preencher boletim de ocorrência. Outro ponto questionado e verificado como entrave refere-se ao fato de que as inspeções apenas teriam validade se o empregador, o qual foi autuado, acusasse o recebimento do relatório da referida fiscalização.

Impende realçar que o texto é contrário aos artigos 1º, III e IV (dignidade da pessoa humana e valor social do trabalho), 3º, I, III e IV (erradicação da pobreza, redução de desigualdades e discriminação), 5º, caput, III e XXXIII (direito à liberdade, igualdade, tratamento degradante e acesso à informação) e 6º (direito ao trabalho) da Constituição Federal. Além disso, viola o princípio da vedação ao retrocesso social.

Além de ser contrária à Constituição Federal, a portaria encontra óbice em instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil como, por exemplo, as Convenções nº 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho.

O artigo nº 2 da Convenção nº 29 trata que “trabalho forçado ou obrigatório designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”.

Já o artigo 1º da Convenção nº 105 aborda que “qualquer Membro da Organização Internacional do Trabalho que ratifique a presente convenção se compromete a suprimir o trabalho forçado ou obrigatório […]”.

Em 19 de outubro de 2017, a Organização Internacional do Trabalho se posicionou em relação à portaria. Iniciou o pronunciamento destacando que o Brasil se tornou paradigma e exemplo no combate ao trabalho escravo, bem como abordou que foram criadas comissões, sejam estaduais, sejam nacionais visando coibi-lo, listas sujas e pactos nacionais, as quais obtiveram reconhecimento pela Organização das Nações Unidas. Asseverou que o “Brasil corre o risco de interromper essa trajetória de sucesso que o tornou um modelo de liderança no combate ao trabalho escravo para a região e para o mundo” e que a gravidade está no fato de reduzir a fiscalização do trabalho, sendo, assim, desprotegida uma fração da nação, a qual já é debilitada e enfraquecida.

Além disso, destacou o protocolo adicional à Convenção nº 29 e sua recomendação de 2014, os quais estabelecem que os “governos devem adotar medidas para promover a devida diligência para combater o trabalho escravo, tanto na esfera pública, como na esfera privada”.

No ano de 2016, o Comitê de Peritos da OIT fez determinadas recomendações ao governo brasileiro ao publicar o relatório anual, ou seja, já estavam auxiliando o país em relação à justiça social e ao crescimento econômico. O governo foi aconselhado a inquirir as autoridades, como, por exemplo, a auditoria fiscal do trabalho e o Ministério Público do Trabalho, antes de alterar o conceito de trabalho escravo, a fim de que não houvesse embaraços e entraves quando da fiscalização.

Ademais, realce-se que foi aprovada, em 17 de julho de 2015, pelos Presidentes dos Estados do Mercado Comum do Sul, a Declaração Sociolaboral do Mercosul. Para o presente estudo destacam-se os parágrafos 1º e 2º, os quais estabelecem, respectivamente, que “toda pessoa tem direito a um trabalho livremente escolhido e a exercer qualquer ofício ou profissão, de acordo com as disposições nacionais vigentes”, e que os Estados se comprometem a “adotar as medidas necessárias para eliminar toda forma de trabalho forçado ou obrigatório exigido a um indivíduo sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente”.

Em 24 de outubro de 2017, a Ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, concedeu liminar suspendendo a referida portaria. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) foi ajuizada pela Rede Sustentabilidade. Na petição, a parte autora abordou que a portaria foi editada “com o inconfessável propósito de inviabilizar uma das mais importantes políticas públicas adotadas no Brasil para proteção e promoção da dignidade humana e dos direitos fundamentais: a política de combate ao trabalho escravo”.

A Ministra destacou que o artigo 1º da portaria:

[…] introduz, sem qualquer base legal de legitimação, o isolamento geográfico como elemento necessário à configuração de hipótese de cerceamento do uso de meios de transporte pelo trabalhador, e a presença de segurança armada, como requisito da caracterização da retenção coercitiva do trabalhador no local de trabalho em razão de dívida contraída. Omite-se completamente, ainda, quanto à conduta, tipificada na legislação penal, de restringir, por qualquer meio, a locomoção de alguém em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Afasta-se, assim, do conteúdo material da legislação de repressão ao trabalho escravo e, em consequência, deixa de cumprir o seu propósito.

Em sua decisão, Weber versa que de modo indevido foram suprimidas do conceito de condição análoga à de escravo “as figuras jurídicas da submissão a trabalho forçado, da submissão a jornada exaustiva e da sujeição a condição degradante de trabalho”, sendo reduzidos e enfraquecidos, assim, os métodos combativos com o intuito de prevenir e reparar às vítimas, uma vez que o conceito restrito apresentado não coaduna com a visão contemporânea apresentada no Código Penal.

Ressalta-se que a portaria, assinada pelo ministro do Trabalho, Ronaldo de Oliveira Nogueira, não autorizava a divulgação de lista suja antes da permissão do mesmo. Importante destacar que referido ministro pediu demissão do cargo, em 27 de dezembro de 2017.

O Ministério Público do Trabalho criticou a portaria. O procurador-geral do Trabalho, Luiz Eduardo Guimarães Borjat, em exercício em 16 de outubro de 2017 (dia da publicação), tratou que a imagem alcançada pelo Brasil no tocante ao trabalho escravo foi arruinada, bem como que a portaria “reverte a expectativa para a construção de uma sociedade justa, digna e engajada com o trabalho decente”.

No mesmo sentido, Tiago Muniz Cavalcanti, Coordenador Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONAETE) do MPT, abordou que:

O governo está de mãos dadas com quem escraviza. Não bastasse a não publicação da lista suja, a falta de recursos para as fiscalizações, a demissão do chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), agora o ministério edita uma portaria que afronta a legislação vigente e as convenções da OIT.

Flávia Cristina Piovesan, presidente da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), de igual modo, criticou a portaria. Na nota em que realiza a crítica, Piovesan destaca que “reduz drasticamente o alcance do conceito de trabalho escravo, ao praticamente limitá-lo às situações de restrição de liberdade e de escolta armada, esvaziando o núcleo elementar de condições degradantes e jornada exaustiva […]” e que “também coloca em grave risco a Lista Suja do Trabalho Escravo, instrumento reiteradas vezes reconhecido, internacionalmente, por sua efetividade no combate ao trabalho escravo contemporâneo”. Por fim, aborda o enorme impacto da portaria no tocante à erradicação do trabalho escravo e informa que a CONATRAE apela “para a imediata revogação da Portaria 1.129/17 do Ministério do Trabalho, por atentar à Constituição Federal, ao Código Penal e aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Estado Brasileiro”. A nota foi publicada em 16 de outubro e Piovesan foi exonerada do cargo de secretária nacional de cidadania do Ministério dos Direitos Humanos, em 1º de novembro de 2017. Em entrevistas, informou que a exoneração não possui ligação com a crítica realizada, uma vez que assumirá, em 2018, uma vaga na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Após a decisão da Ministra Rosa Weber, do pronunciamento da Organização Internacional do Trabalho, da manifestação do Ministério Público do Trabalho e da nota publicada pela CONATRAE, em 29 de dezembro de 2017, o Ministério do Trabalho publicou uma nova portaria, sendo a de nº 1.293 de 2017. O novo texto alterou a definição de condição degradante e de jornada exaustiva, bem como, foi retirada a exigência de que a lista suja apenas poderia ser divulgada após autorização do ministro do Trabalho, respeitando, assim, a legislação em vigor, as convenções e recomendações internacionais.

Deste modo, conforme o texto da nova portaria, jornada exaustiva é toda “forma de trabalho, de natureza física ou mental, que, por sua extensão ou por sua intensidade, acarrete violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os relacionados a segurança, saúde, descanso e convívio familiar e social”; e condição degradante “é qualquer forma de negação da dignidade humana pela violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os dispostos nas normas de proteção do trabalho e de segurança, higiene e saúde no trabalho”, sendo retirado de ambos o conceito de limitação à restrição à liberdade de ir e vir.

Impende destacar a pesquisa realizada pelo G1. Na referida pesquisa foram analisados os relatórios de fiscalização referentes aos anos de 2016 e 2017. Destaca-se o óbice da primeira portaria, tendo em vista que constava a necessidade de haver restrição de liberdade, assim, “durante o período analisado pela equipe de reportagem, quase mil trabalhadores resgatados (959) não iam ter se enquadrado na nova definição e podiam estar até hoje em condições degradantes6.

Os direitos humanos devem ser verificados como corolários de lutas históricas, as quais sempre objetivaram ampliar e melhorar as condições de vida dos mais desfavorecidos na sociedade, sejam os pobres, sejam os negros, sejam os operários, sejam os marginalizados. Os governos devem buscar métodos com o intuito de complementar os instrumentos que já possuem, visando proteger a classe trabalhadora. Contudo, a portaria nº 1.129 apenas retrocedeu os direitos da classe alcançados ao longo dos anos, ou seja, a história de lutas foi abandonada e desprezada.

Vinícius Gozdecki é mestre em Direito Fundamentais e Democracia e advogado do Instituto Declatra