A greve dos petroleiros é social e política

O que não pode desprezar é que a greve em serviços essenciais é garantida no texto constitucional e na lei de greve de 1989





Foto: Ascom FUP

Sidnei Machado*

A antecipação do governo Temer em qualificar a greve dos trabalhadores petroleiros do dia 30 de maio como greve de cunho político-ideológico, com pedido de intervenção do Tribunal Superior do Trabalho (TST) pela Advocacia Geral da União (AGU) para impedir por liminar o exercício da greve, é mais um ato de grave degeneração democrática. Qualificar a greve como subversão da legalidade, e não como um valor de participação democrática reconhecido pela Constituição de 1988, é esvaziar o sentido jurídico e político do direito de greve.

No difícil contexto de crise política e econômica, que coloca a questão do petróleo e da Petrobrás no centro do conflito ampliado, a pauta do movimento petroleiro, frente ao claro cenário de risco de degradação de seus direitos pela viragem na política da empresa Petrobrás, seu empregador direto, associa naturalmente com a política mais ampla do governo Temer. Esse quadro conduz a uma greve de natureza sócio-política.

É fato que a greve foi deflagrada em meio ao ciclo de intensas mobilizações sociais iniciadas com a greve dos caminhoneiros no dia 21 de maio, mas apresenta uma pauta de reivindicações própria, que inclui a mudança na política de preços da Petrobrás, o afastamento presidente da Petrobras, Pedro Parente, a interrupção do processo de venda de refinarias e a manutenção de empregos. O processo político em curso se expressa também num conflito entre capital e trabalho. Na pauta sindical revela que as reivindicações são um misto de caráter profissional, social e político, temas indissociáveis da concertação da relação de trabalho.

Do ponto de vista conceitual há greves políticas ditas “puras” e greve políticas que contém outro interesse de natureza profissional. Essa distinção é reconhecida pelo Comitê de Liberdade Sindical da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A greve sócio-política não é ilegal, pois é também expressão de um conflito coletivo, albergado pelo direito de protesto e manifestação contra atos do poder legislativo ou executivo, com ampla proteção constitucional (art. 5º, XVI).

Em relação a finalidade da greve, basta mencionar que ela é reconhecida pela Constituição brasileira de 1988 como direito fundamental amplo, com a seguinte fórmula: “é assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender” (art. 9º, caput). O modelo brasileiro de greve de modo induvidoso não é restrito à negociação coletiva, pois contempla como legítimo em seu escopo constitucional a defesa de qualquer interesse definida pelos trabalhadores. O conteúdo expresso na greve dos petroleiros é uma greve de natureza mista, de caráter social e político, com respaldo na Constituição.

Valer-se do uso de ação judicial, com pedido de tutela inibitória, de natureza preventiva da greve, como o fez a AGU, é medida de típica exceção, sem precedente no direito brasileiro do pós-constituição de 1988. O que se quer com essa medida é um controle prévio da greve, a pretexto de “risco de abusividade”.

Na mesma linha restritiva está a decisão proferida pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 25 de maio, ao conceder liminar, em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 519) contra o movimento dos caminhoneiros. Para deferir a liminar na ADPF 519, o ministro Alexandre de Moraes, para argumentar que há limites no direito de mobilização, colocou no mesmo patamar os direitos de reunião, de manifestação de pensamento e de greve, para afirmar que são direitos fundamentais relativos, não absolutos. Com essa proposição, o ministro conclui facilmente não ver compatibilização dos protestos sociais com a prática dos direitos fundamentais. Sem deixar de considerar que o movimento dos caminhoneiros passa ter praticado abusos, o fundamental é que essa linha argumentativa conduz a promover inexorável restrição ao direito de greve em todas atividades essenciais, com o potencial de aniquilar o sentido democrático do direito de greve nessas atividades.

O que não pode desprezar é que a greve em serviços essenciais é garantida no texto constitucional e na lei de greve de 1989 (Lei 7.789/89), cujo modelo demasiadamente restritivo já cria imensas dificuldades de exercício desse direito. A questão é que a interpretação conferida pelo ministro Alexandre de Moraes — essencialmente a mesma que AGU pretende no TST contra os petroleiros — vê na greve primordialmente um ato de risco de prejuízo e transtorno à população, racionalidade que somente tem paralelo no modelo da ditadura varguista em 1937, que considerava a greve um delito, uma ameaça à ordem pública. Em suma, o que está em questão é de risco de uma regressão no texto constitucional com a perda de efetividade do direito fundamental de greve como instrumento democrático de pressão.

* Sidnei Machado é advogado e professor de Direito do Trabalho na Universidade Federal do Paraná.