A decisão cubana de romper convênio com o Brasil no Programa Mais Médicos tem sido comemorada pelos eleitores do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL). As motivações ideológicas, de preconceito e raiva parecem ser maiores do que razões práticas. Para essa gente, os médicos cubanos em nosso país são parte de uma trama socialista para doutrinar nossa população. Sim, a terra é plana e o Muro de Berlim ainda não caiu para muitos. Outro tanto de pessoas alegam – cínica ou inocentemente – que esses médicos são “escravizados” no Brasil ao ficarem com apenas ⅓ do que o país paga por cada profissional. Desconhecem a origem do programa cubano que, com os embargos econômicos, encontrou um mecanismo de fazer renda ao seu povo levando saúde básica a outros países emergentes ou em situação de calamidade pública.

Mas também há setores da sociedade extremamente preocupado com a abrupta saída dos cubanos após declarações irresponsáveis do presidente eleito. São aqueles que serão impactados diretamente pelo fim do convênio: os municípios. Os prefeitos sabem que não é tão simples a substituição desses profissionais por razões econômicas e culturais. Uma nota do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e a da
Frente Nacional de Prefeitos (FNP) lamenta “a interrupção da cooperação técnica
entre a organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e o governo de Cuba, que
possibilitava o trabalho de cerca de 8.500 médicos no Programa Mais Médicos”. E aqui não se pode acusar as entidades de “doutrinação partidária”, uma vez que são compostas por gestores municipais de diversificada coloração.

Ao emitir nota, eles lembram o que muita gente faz questão de esquecer ou omitir do debate público: antes dos “Mais Médicos”, o Brasil tinha (ainda tem) grande deficiência em medicina básica nos grotões do país. Lembram das motivações econômicas e culturais? Pois bem, nossos médicos não queriam – e não querem – atender os mais pobres nos cantos mais distantes da pátria amada ou mais perigosos de nossas grandes cidades. Tanto que, “dos 5.570 municípios do país”, segundo a FNP, “3.228 (79,5%) só têm médico pelo programa e 90% dos atendimentos da população indígena são feitos por profissionais de Cuba”.

A Frente de Prefeitos ainda recorda que o “Mais Médicos” surgiu  após pressão, em 2013, quando estes identificaram “a dificuldade de contratar e fixar profissionais no interior do país e na periferia das grandes cidades”. E os médicos cubanos por aqui desembarcaram após malograda chamada pública para que os patriotas batas brancas brazucas assumissem postos de saúde. Desertaram.

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Por outro lado, se a realidade nacional é conturbada demais para se chegar a conclusão que o Brasil só tem a perder com a saída dos médicos cubanos e que esses foram alvo de preconceito e até xenofobia, talvez uma boa alternativa seja recorrer à ficção. Às vezes, bons livros e filmes ajudam a explicar o que representa, por exemplo, um município como Ponta Grossa, de médio porte e a cerca de 200 quilômetros da “República de Curitiba”, no Paraná, perder 60 dos 80 médicos que estão no programa.

Um bom case disso é o filme francês “Bem vindo a Marly Gomont”. A obra narra a história do médico africano Dr. Seyolo Zantoko, formado na França, que aceita oferta de em um pequeno vilarejo nos grotões franceses. Fugindo da Ditadura em seu país natal, Congo, ele se transfere com sua família para Marly-Gomont, onde não é bem recebido pela comunidade pelo fato de ser “preto”.

O filme mostra como o doutor tenta conquistar seu espaço realizando, principalmente, atendimento básico de saúde. Por lá, as desconfianças com o profissional são as mesmas que vemos por aqui na boca do povo: “Ele é negro, ele não sabe falar direito, volta pro Congo, ele não revalidou seu diploma etc”.

Uma das tramas mais interessantes trata das ações do candidato extremista à prefeitura que boicota o médico cubano, digo, congolês, e incita a população a rejeitar seu trabalho, mesmo que para isso fique desassistida.

Bem vindo a Marly Gomont é baseado em fatos reais. O filme, exibido a partir de 2016, tem como época o ano de 1975. Quem sabe, daqui uns 30 anos, algum cineasta brasileiro contará histórias de atendimentos feitos pelo “Mais Médicos” no Brasil. Como um caso na Lapa (PR), em que uma senhora que tomava remédio para Parkisson, após ser atendida por um médico cubano, descobriu que o motivo de suas constantes quedas era a desnutrição.

Ficha Técnica
Bem vindo a Marly Gomont
Gêneros: Comédias, Dramas
Direção: Julien Rambaldi
Estrelando: Marc Zinga, Aïssa Maïga, Bayron Lebli
2016 | 1h33
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