Por Jucimeri Isolda Silveira*

Duas decisões recentes de iniciativa governamental representam ameaças à vida das mulheres no Brasil. A primeira é a Emenda Constitucional nº 95/2016, que congela os gastos sociais por 20 anos e inviabiliza serviços sociais públicos e o pacto federativo para a implementação de políticas sociais, o que inclui as de gênero e de proteção social. Muitos equipamentos que desenvolvem serviços especializados – cuja função é romper e prevenir ciclos de violência no âmbito familiar e nos territórios – estão sendo fechados por dificuldades financeiras dos estados e municípios e por uma ruptura do pacto social pelo governo federal. Um sucateamento que compromete a rede de acolhimento para mulheres em situação de violência.

A segunda decisão fatal é o Decreto nº 9.685, de 15 de janeiro de 2019, que facilita a posse de armas de fogo no Brasil. Trata-se de uma medida que significa uma aposta na violência como solução de conflitos e na defesa individual em detrimento da modernização e do aprimoramento das políticas de segurança pública, tendo em vista a tendência de mais mortes violentas em sociedades mais armadas. Infelizmente, essa decisão do Estado brasileiro, caso o parlamento aprove a proposta governamental, vai promover o aumento do feminicídio, por, justamente, facilitar o acesso às armas de fogo.

A violência contra a mulher é alarmante e silenciada pela cultura machista que predomina em nossa sociedade.

Cotidianamente, mulheres, jovens e meninas sofrem com algum tipo de violência no Brasil, seja na vida privada, ou nos espaços públicos. O feminicídio, expressão maior e mais cruel da desigualdade de gênero, é assustador e o Estado tem sido, sistematicamente, reduzido nas suas funções constitucionais, na sua capacidade institucional de reverter cenários e salvar vidas.

Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2017, uma mulher é assassinada a cada duas horas no país. A cada hora, 503 mulheres sofrem algum tipo de violência. Também ocorrem cinco espancamentos a cada dois minutos. Em 2016, foi contabilizado um estupro a cada 11 minutos no Brasil, sem considerar as violações de direitos que não são registradas ou denunciadas e, por isso, não compõem os relatórios de vidas violentadas ou interrompidas.

Casa da Mulher Brasileira foi inaugurada em Curitiba sem a presença da ex-presidente Dilma, que havia sofrido golpe. Foto: Manoel Ramires/Sismuc

A Casa da Mulher Brasileira – um programa lançado pela então presidenta Dilma Rousseff, para acelerar o enfrentamento da violência contra as mulheres no Brasil – não compõe mais o ciclo orçamentário do governo federal e, portanto, as expansões planejadas. Em Curitiba (PR), a casa atende apenas as mulheres da capital. Alguns atendimentos pontuais são realizados para mulheres da região metropolitana. O ideal seria uma efetiva integração operacional entre órgãos do sistema de Justiça, segurança pública e políticas sociais. Uma regionalização do atendimento integral e cobertura plena em todo o estado com novas estruturas.

Muitas mulheres estão desprotegidas ou com proteção insuficiente para prevenir violências. O itinerário das mulheres em busca de proteção é marcado por violência simbólica em delegacias especializadas ou não; pela insuficiência de Casas Abrigos para a garantia de sua proteção; pela desproteção nos contextos de medidas protetivas e fiscalização de sua aplicação por parte de agentes de segurança especializados; pela falta de políticas públicas para a garantia dos direitos sociais e reconstrução de suas vidas, entre outra ausências e violações.

Foto: Leandro Taques

Posse de armas
O que preocupa, sobremaneira, é que existe uma relação indissociável entre aumento do porte de armas com violências e feminicídio. Em 2016, ocorreram 62.517 homicídios, sendo que em 71,1% das mortes se deram por meio da arma de fogo (Atlas da Violência, 2018). Importante observar que os serviços de proteção social, integrados com demais serviços sociais e com o sistema de Justiça, cumprem uma função indispensável na defesa da vida das mulheres. Mas, como proteger as mulheres num contexto de cultura de ódio, de indiferença e de naturalização das desigualdades, de desmonte dos sistemas estatais?

O que se verifica é uma tendência de redução drástica de políticas sociais de Estado, de dispositivos protetivos, de políticas de educação em direitos humanos, de reformas e políticas que reduzam desigualdade de gênero, social e étnico-racial e combatam as violências e opressões.

O que se confirma, entretanto, é um cenário dramático de consolidação de um Estado socialmente penal, conservador e criminalizador, ao tempo em que é economicamente gerencial para atender aos interesses do mercado.

Conclui-se que as vidas de mulheres importam menos, especialmente, numa sociedade hierarquizada normativamente, profundamente desigual e violenta. Realidade cruel que precisa alimentar a insurgência, o interesse coletivo e a luta social pela dignidade.

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Jucimeri Isolda Silveira é assistente social, coordenadora do Núcleo e da Área Estratégica de Direitos Humanos, professora do Curso de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas da PUC-PR. Também é conselheira do Conselho Regional de Serviço Social e parceira do Instituto Aurora.