Lideranças indígenas reverenciam Ângelo Kretã e reforçam resistência ao governo Bolsonaro

MPPR sediou ato em homenagem a uma das maiores lideranças indígenas do país, morto há 40 anos





Cacique Romancil Kretã (ao centro), filho de Ângelo Kretã. Foto: Júlio Carignano

O Ministério Público do Paraná (MPPR) sediou na quarta-feira (29) um ato em memória aos 40 anos da morte do líder indígena Ângelo Kretã, vítima de um acidente de carro criminoso no dia 27 de janeiro de 1980 e que faleceu dois dias depois, em 29 de janeiro. Kretã é considerado um dos maiores líderes indígenas do país e a data de sua morte é reconhecida como um Dia de Luta e Resistência dos Povos Indígenas do Sul por ele ter sido um dos principais articulares e precursores da retomada de terras tradicionais nesta região do país.

Nascido em 1942, ele constituiu toda a sua vida na Terra Indígena de Mangueirinha, no Sudoeste do Paraná. Foi o primeiro vereador indígena eleito no país, em 1976, em plena ditadura militar. “Meu pai foi eleito em 76 pelo MDB. Nesta época nós indígenas ainda éramos consideramos menores, incapazes, éramos tutelados. A Funai proibiu ele de sair vereador, mas ele brigou na Justiça e conseguiu ser candidato e se eleger”, lembra Romancil Kretã, filho de Ângelo e atualmente cacique da Aldeia Tupã Nhe’é Kretã, em São José dos Pinhais (PR).

Caçula dos cinco filhos de Ângelo, Romancil comandou o evento em homenagem ao pai e compartilhou relatos que emocionaram os presentes. Na época da morte do pai, o atual cacique tinha apenas 8 anos. “Quando meu pai morreu eu tinha 8 anos, eu não conhecia bem quem era o Ângelo, pois ele saia muito, voltava tarde. Ele tinha um Fusca e viajava para o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A gente escutava na rádio ameaças ao meu pai, minha mãe avisava para ele se cuidar”, recorda. Kretã falou do sentimento dos filhos e filhas de lideranças indígenas que são assassinadas na busca por seus direitos.

“O que eu mais senti na vida é aquilo que mais sente os filhos e filhas de vários que morreram. É um colo, um abraço de um pai, esse direito que ninguém poderia ter tirado da gente. Dos ensinamentos que os pais podem passar”, relatou Romancil Kretã.

O cacique também compartilhou um sonho que lhe marcou. “Neste sonho tinha um grupo de pessoas e fui até eles e me disseram: ‘o Ângelo está ali, teu pai está ali’. Então fui até ele e falei: ‘Ângelo, eu queria te dar um abraço. Queria te agradecer pelo nome que você deixou para nós, pelo legado que deixou para nós’. Depois do abraço, eu acordei e senti o cheiro dele dentro da casa. Levantei e parecia que ele estava ali”, contou o cacique.

Outras lideranças destacaram o legado deixado por Ângelo Kretã, especialmente aos povos que retomaram territórios tradicionais. Luis Salvador, o “Saci”, coordenador do Movimento Indígena do Rio Grande do Sul, destacou que fazer reverência a memória de Kretã é uma forma de fortalecer a união dos diversos povos indígenas em momento de resistência ao governo Bolsonaro. “Somos mais de 300 povos com mais de 270 línguas. É momento de nos unirmos contra esse governo que é racista e fascista, que relega o direito dos povos indígenas, dos ribeirinhos, dos quilombolas e dos trabalhadores em geral”.

Os “Encantados”

Erisvan Bone, jovem liderança do povo Guajajara. Foto: Júlio Carignano

Além de caciques da etnia Kaigang, Xetá, Xokleng e Guarani da região sul, o encontro contou com a presença de Erisvan Bone Guajajara, do povo do Maranhão. Formado em jornalismo, ele é uma jovem liderança que atua desde 2010 dentro de organizações políticas e como ativista cultural. É um dos fundadores da rede “Mídia Índia”, que dá voz aos povos do Brasil e que divulga notícias de campanhas indígenas de todo país através de sua página no Facebook.

Para Erisvan, estar ao lado do filho de Ângelo Kretá em um evento em memória aos 40 anos de seu assassinato foi uma demonstração da força e união dos povos do Brasil. Ao lembrar das recentes mortes de lideranças Guajajara, Erisvan destacou que esses mártires tornaram-se “encantados”.

“Kretã virou um encantado que nos dá força para continuarmos lutando em defesa da mãe terra, dos nossos TERRITÓRIOS, dos nossos rios. Deixaremos nossas marcas nas ruas deste país, de urucum e jenipapo. Porque é a força destes nossos encantados – como o Kretã, como o Paulo Paulino Guajajara – que nos fará vitoriosos na nossa luta por vida digna em nossos territórios”.

Carta dos Povos do Sul

Além de reverenciar a memória de Ângelo e enaltecer seu idealismo, o evento no Ministério Público encerrou um encontro de três dias entre lideranças da região Sul, onde foram debatidas as pautas do Movimento Indígena Brasileiro. Ao fim do evento foi entregue uma carta ao procurador Olympio de Sá Sotto Maior Neto, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos do MP-PR e ao senador Flávio Arns.

O documento denuncia os ataques do governo federal e as violações dos direitos constitucionais dos povos indígenas praticados pelo ministro Sergio Moro, que recorreu a um parecer aprovado por Michel Temer para devolver à Fundação Nacional do Índio (Funai) 17 processos de demarcação de terras que estavam no órgão a espera de uma decisão do ministro. A carta também cobra agilidade nas demarcações em processo, constituição de grupos de trabalho com antropólogos qualificados, recursos à Funai para políticas públicas e saúde e educação diferenciada que valorize o profissional indígena e a ancestralidade.

Procurador Olympio e senador Flávio Arns recebem carta de lideranças. Foto: Júlio Carignano

O documento repudia a declaração recente de Jair Bolsonaro de que “o índio mudou, está cada vez mais, um ser humano igual nós”; considerada preconceituosa e desrespeitosa. As lideranças declaram apoio a atuação pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que move um processo contra Bolsonaro por racismo em razão da declaração.

Ao entregar a carta, Kretã pediu ao procurador e ao senador que o documento não seja simplesmente “engavetado” e que seja colocado em prática.

“Nunca houve tanta matança, invasão de terras indígenas, medidas provisórias contra nossos povos, tentativas de regularização de garimpo ilegal, arrendamento e incentivo de arrendamento de nossas terras e sem qualquer política pública para tornarmos nossas terras sustentáveis”, disse Kretã.

Para terminar, o cacique reforçou que a homenagem ao seu pai também é uma demonstração de resistência ao governo Bolsonaro. “Ele [Ângelo] dizia que não tinha medo dos inimigos dos povos indígenas. Ele dizia que depois dele viria mais mil Kretãs. Ele não falava de nós, da nossa família, ele falava dos Kaigang, dos Guarani, dos Xeta, dos Xokleng, de todos os povos indígenas do Brasil. Esse governo incentiva o racismo, o preconceito, a violência contra o nosso povo, mas ele [Bolsonaro] passará e nós ficaremos, da mesma maneira que o Ângelo permanece em espirito entre nós”, concluiu.