Camarada Saldanha, presente!

Em 12 de julho de 1990, João Sem Medo falecia em Roma durante a cobertura da Copa do Mundo





João Saldanha, o João Sem Medo. Foto: Arquivo EBC

Em 12 de julho de 1990, um dos maiores brasileiros de todos os tempos fazia sua partida final. Aos 73 anos, João Saldanha falecia em Roma, na Itália, quatro dias após a cobertura da final da Copa do Mundo que a disciplinada Alemanha derrotou a Argentina da dupla Diego Maradona e Cannigia.

Em um período em que o futebol foi transformado em mercadoria, em que dirigentes do esporte se aliam com o que há de mais retrógrado no país e que colocam os lucros acima de vidas, lembrar de João Saldanha é fundamental.

Apesar de ser conhecido como o jornalista esportivo mais consagrado do Brasil e o treinador que formou a maior seleção de todos os tempos, Saldanha dava mais importância para sua atuação política e é ela que irei brevemente destacar.

O ‘João Sem Medo’, apelido dado por Nelson Rodrigues, nasceu no município gaúcho de Alegrete, no ano da Revolução Bolchevique, e tornou-se um patrimônio do Rio de Janeiro. Porém, Saldanha também teve uma relação íntima com o Paraná em dois momentos de sua vida.

Antes de ganhar o Rio de Janeiro e o Rio ganhar Saldanha, o menino João morou com a família em Curitiba nos anos de 1920 e, no fim desta década, teve seu primeiro contato com aquela que seria sua grande paixão: a bola de futebol.

O menino mudou-se com a família para a capital paranaense em 1924, ano de fundação do Atlético. Quis o destino que o guri de Alegrete fosse morar perto de onde hoje está localizada a Arena da Baixada. Aos fundos da casa onde morava estavam as primeiras instalações do rubro negro do Paraná.

O pequeno João já batia bola com amigos nas redondezas rubro-negras e um dia resolver conhecer o campo do novo time que se instalava na cidade. Passou a ser um frequentador assíduos dos treinos das categorias de base do Furacão.

De tanto ir ao campo, acabou sendo escalado como goleiro dos ‘filhotes do Atlético’. Sua breve passagem pelas categorias de base do rubro negro é contada pelo jornalista André Iki Siqueira na biografia ‘João Saldanha – Uma Vida em jogo’. Foi neste momento que despertou para o futebol e escolheu seu primeiro time a torcer.

Depois da infância em Curitiba, Saldanha partiu para Cidade Maravilhosa, verdadeira casa sua e de seu “Botafogo do coração”. Foi lá que seguiu seus estudos, cursou Direito e ingressou nas fileiras do Partido Comunista Brasileiro. Na sua fase mais militante e dedicada ao ‘Partidão’, o Paraná voltou a cruzar o caminho do João Sem Medo.

Saldanha foi assistente político do grupo que ajudou a organizar a guerrilha camponesa de Porecatu, no norte do estado. Ocorrida entre 1948 e 1951, o episódio – que é conhecido como “a guerrilha que os comunistas esqueceram” – foi um dos mais violentos conflitos agrários do Brasil no século 20.

Segundo biógrafos, João Saldanha estava ligado ao segundo homem na hierarquia do PCB, logo abaixo do secretário-geral Luis Carlos Prestes. Seu papel prestar assessoria aos posseiros que se organizavam para a luta armada.

Voltando ao futebol, mas sem deixar de lado a política – pois tudo está interligado – Saldanha nunca teve papas na língua como treinador e cronista esportivo. Enfrentava como ninguém os generais que tentavam ditar o tom da CDB (hoje CBF), comandada na época por Havelange, amigo do regime, que o contratou para acalmar críticas da imprensa e o descontentamento da população.

A passagem como treinador canarinho foi curta, mas providencial. João montou o “time de feras”, com Pelé, Gérson, Tostão, Rivelino, Jairzinho e cia. Foi demitido às vésperas da Copa de 1970, no México, por não concordar com interferências dos generais em suas escalações.

Um dos episódios mais conhecidos é o pedido de Médici, torcedor do Galo mineiro, para convocar o centroavante Dada Maravilha. Indagado por um repórter, Saldanha respondeu: “Eu não escalo o ministério, ele [Médici] não escala a seleção”.

No fim de 1969, após o assassinato de Carlos Marighella, seu amigo de longa data, distribuiu a autoridades internacionais durante passagem pelo México um dossiê em que citava o nome de perseguidos (especialmente jornalistas), presos políticos e centenas de mortos e torturados pela ditadura brasileira.

Mesmo após ser derrubado do cargo de treinador da Seleção, a perseguição não parou. Então contratado pela BBC para fazer artigos sobre a Copa de 70, Saldanha teve credenciais negadas pela CBD para acompanhar o escrete canarinho em virtude de seus comentários considerados “incendiários”.

Zagalo assumiu aquela seleção montada por Saldanha. O ‘velho lobo’ convocou Dada, atendendo os caprichos do general, porém não usou o centroavante em nenhum jogo no México.

João Saldanha foi intenso em tudo que viveu: no jornalismo, no futebol, na política e na militância. Participou dos principais momentos de luta de nosso país e hoje está no seleto time dos imprescindíveis. Nos ensinou que é preciso sempre tomar partido e, sobretudo, não ter medo. E hoje, em tempos quase distópicos, mais do que nunca nos serve de inspiração.