Paraná pretende “passar boiada” por linhas de transmissão

Governo estaria “manipulando” decisões de conselho histórico, artístico e ambiental para aprovar projeto que beneficia empresa Enge e põe em risco APA da Escarpa Devoniana





Linhas de transmissão de energia, energia elétrica. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

A boiada está passando no meio ambiente. E não é apenas pelos pastos e derrubando porteiras que protegem as matas, fauna e flora brasileiras. A desregulamentação de setores ambientais e o favorecimento de lobbies está passando por cima de nossas cabeças, por meio de linhas de transmissão. Neste caso, as Araucárias e a vegetação vão para o sacrifício. Tudo com o aval dos organismos de controle, como o Conselho Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Cepha). No entanto, o que a sociedade desconhece, é que em muitos casos, esse controle social acontece de fachada. Está ali só para aprovar os interesses do governo ou de empresas que têm interesse em passar a boiada. É isso que denuncia Aristides Athayde, advogado, especialista em direito da conservação, que foi destituído do cargo de conselheiro após questionar o projeto Gralha Azul, da empresa francesa Engie, que passa pela APA da Escarpa Devoniana. Segundo a empresa, o projeto, possui “mais de 1.000 quilômetros de linhas de transmissão que irão percorrer 24 municípios paranaenses e gerar mais de 4 mil empregos diretos durante a fase de construção, além de movimentar R$ 2 bilhões em investimentos”. Nos bastidores, no entanto, a aprovação disso aconteceu de forma que os interesses empresariais se sobrepusessem à preservação ambiental. Aristides Athayde alerta: “Se não cuidarmos, a Apa da Escarpa Devoniana será transformada em um canteirão de pinos e soja, atravessada por linhas de transmissão horrorosas. Se deixarmos, rapidinho vão roer nosso futuro”. Confira a entrevista.

Aristides Athayde

Porém: Qual é a função do Cepha e por quem e por que ele vem sendo enfraquecido nos últimos anos?

Aristides Athayde: O CEPHA tem a missão de zelar pelo patrimônio histórico, artístico e ambiental do Paraná. Se atuante e independente, um Conselho permite à administração pública dividir com a sociedade decisões importantes que podem influenciar definitivamente o destino de nossos bens comuns, aqueles bens que representam nossa própria identidade. Infelizmente, os Conselhos têm sido vistos, neste e nos Governo que o antecedeu, como entraves. Como incômodos. Assim, a pauta política, eleitoreira, ou mesmo os lobbies dos amigos do poder, atropela a atuação destes colegiados.

Porém: A sociedade vem perdendo espaço nos organismos de controle ou participando só de “fachada” nos conselhos, uma vez que as decisões já estão pré-estabelecidas?

Aristides Athayde: Não diria que as decisões já estão preestabelecidas. Mas não interessa ao Governo dividir seu poder de decisão com a sociedade. Tanto é que a publicidade devida ao Conselho não é exercida! As reuniões deveriam ser publicamente anunciadas. Abertas mesmo.

Veja, por exemplo, o que aconteceu na última reunião em que participei, em que uma equipe da RPC foi expulsa da sala. Não pode registrar em imagens a reunião. Agora, olhe a disparidade: Nesta mesma reunião, em que o Presidente do Conselho e à época Secretário de Comunicação, Hudson José, impediu a presença da equipe jornalística, a presença de uma verdadeira missão da Engie, que incluía inclusive sua advogada, se fez presente, obviamente no intuito de influenciar o voto dos Conselheiros.

Outra coisa que me deixou estupefato, e que, inclusive, trouxe à discussão na reunião ocorrida no dia 3 de dezembro do ano passado. As convocatórias, dirigidas aos Conselheiros, não traziam o assunto a ser debatido. Veja que absurdo! Isto não só impede os Conselheiros de buscar informações sobre o que será debatido, como também impede a sociedade de participar.

Acredito que este seja mais um “truque” para afastar a sociedade e mesmo evitar chamar a atenção do Ministério Público por exemplo. Eu aprendi com o meu avó: quem não quer mostra, ou é porque está fazendo algo errado, ou é porque está fazendo algo mal feito.

Reprodução Instagram Engie.

Porém: Quais os resultados nocivos que podem ser vistos com a “boiada” sendo passada também no patrimônio histórico?

Aristides Athayde: Enormes. Primeiro, a sociedade não está sendo chamada para participar. E aqueles que mostram contrários às posições do Governo são vistos como inconvenientes. Depois, decisões marcadas pela parcialidade podem legitimar ações que, se melhores enfrentadas, não viriam a ser praticadas. Algo do tipo: o Governo diz que o traçado das linhas de transmissão da Engie foi aprovado pelo Conselho, e é, portanto, lícito. Mas esquece de mencionar que, primeiro, os Conselheiros não sabiam o que iam votar. Segundo, a imprensa foi afastada da reunião. Conselheiros recém-empossados, como era meu caso, não puderam ter vistas dos autos; membros da Engie, incluindo sua advogada, participaram e opinaram na reunião. A sociedade, a academia não são chamadas.

Porém: A sociedade paranaense está atenta ao caso da multinacional francesa Engie? Em nome do progresso, adotou-se um “vale tudo” para a instalação das linhas de transmissão? Explique um pouco do que está por trás dessa intenção?

Aristides Athayde: Está começando a ficar atenta. E isso graças a veículos como o seu e a atuação heroica do terceiro setor. Adotou-se sim um vale tudo. Mas não pelo progresso. Um vale tudo pelos interesses da Engie. Progresso, na minha opinião, é geração distribuída, um arranjo em que pequenos geradores suprem, através de fontes renováveis, a demanda de carga. É investir em alternativas de desenvolvimento turístico de base sustentável. É arejar o governo, trazendo para dentro a sociedade.

Este projeto é absurdo se consideradas à sua oportunidade e as consequências ambientais e sociais que por certo trará. É absurdo, também, pelo favoritismo que desperta em elementos do Governo Estadual.

Veja, como falar em progresso se as linhas de transmissão servirão para atravessar uma Área de Proteção Ambiental, a APA da Escarpa Devoniana, enfeiando para sempre uma das mais belas regiões do Brasil e comprometendo o desenvolvimento do turismo local? Como falar de progresso se estas torres de dezenas de metros vão comprometer a criação de unidades de conservação, como o já estudado Refúgio de Vida Silvestre do Alto Tibagi?

Ademais: justifica-se o projeto em cima do aumento de carga, previsto para acontecer em vinte anos. Serviria para levar a energia de Itaipu à Ponta Grossa. Mas qualquer um sabe que em vinte anos as tecnologias de geração de energia e de distribuição serão muito diferentes. Em poucos anos, viveremos a era da “uberização” da energia. Vamos comprar energia de quem quisermos, pelo valor que nos convier e escolhendo a forma que foi gerada. Este projeto simplesmente ignora o que acontecerá. A população local – diretamente afetada – em nada ganhará. Conversando com alguns moradores, percebi que achavam que as torres, que serão enfiadas nos pontos mais bonitos do Estado baratearão e resolver o problema das quedas de energia. A energia que passará pela torres nem vai pingar por lá. Vai direto aos grandes consumidores industriais.

Traçado proposto pela Engie. magem: Reprodução internet

Porém: Quais são os riscos que a APA Escarpa Devoniana está correndo? E o patrimônio ambiental do Paraná, de forma geral? Que prejuízos serão impostos à biodiversidade e à sociedade?

Aristides Athayde: Inúmeros. Gravíssimos. A APA traz condições de zoneamento ecológico que deveriam garantir sua riqueza geológica, sua fauna, sua flora, e integrar o homem do local ao desenvolvimento do Estado. O que se vê, entretanto, é uma conivência com as mineradoras, com os projetos bizarros de energia – como este da Engie – com o agronegócio irresponsável.

Se não cuidarmos, a Apa da Escarpa Devoniana será transformada em um canteirão de pinos e soja, atravessada por linhas de transmissão horrorosas. Se deixarmos, rapidinho vão roer nosso futuro.

A APA mantém a água que abastece a agricultura do Segundo Planalto. Mantém uma fauna riquíssima. Flora rara e ameaçada. Guarda nossa história e a possibilidade de fazermos lago certo e inteligente.

Porém: Esses riscos estão sendo deliberadamente ignorados?

Aristides Athayde: Estão. É mais fácil ser irresponsável. Fingir que não existem os últimos Campos Gerais, que não existe água no solo local, que não existem espécies ameaçadas ou tradições seculares. Assim, dá para deixar a boiada passar, pisoteando em tudo, com menos dor de consciência.

Porém: Acredita que você foi afastado da Cepha em virtude dos alertas e críticas feitas ao projeto que favorece a Engie? Conte um pouco sobre como foi sua experiência no conselho?

Aristides Athayde: Óbvio que fui. Fui afastado por conta da minha posição combativa em defesa do meio ambiente. Fui afastado por buscar transparência nas decisões do CEPHA. Quando fui nomeado, não fazia parte do Governo. Entretanto, por um descuido, imaginaram estar ainda fazendo parte do Estado. Me desliguei do Governo Ratinho por conta de conflitos de ordem ideológicas insuperáveis. Sou contra o alinhamento deste Governo com Bolsonaro, e contra projetos como o da estrada que viabilizará a instalação de um porto privado na frente da Ilha do Mel.

Este descuido em acharem – erroneamente – que poderiam me influenciar levaram à escolha de meu nome. Reforço minha opinião com relatos que ouvi, após a primeira reunião que participei, quando membros do Governo tentaram via terceiros meus alinhamentos e ficaram surpresos descobrir que não mais fazia parte do quadro funcional. A experiência foi interessantíssima. O Conselho é formado em sua maioria por pessoas incríveis, muito cultas e experientes. Mas também sofre, como já mencionei, a pressão explícita e absurda do Governo.

A maioria dos Conselheiros é formada por acadêmicos, por intelectuais. Gente mais afeita aos debates culturais do que às brigas brabas, marcadas pelo interesse dos grupos de pressão. Exemplo desta pressão foi a presença de ninguém menos que o presidente da Copel Transmissão, Moacyr Bertol, na última sessão que participei. A presença do presidente – que deve ter uma agenda apertadíssima – prova o interesse em ver aprovado o projeto. Executivos e advogados da Engie lá dando opinião. E a condução extremamente parcial do ex-secretário Hudson. Como se esforçou o Hudson para ver este projeto aprovado…

Porém: Acredita que o projeto de destruição do meio ambiente, seja no Paraná, seja no Brasil, está sendo bem sucedido?

Aristides Athayde: Ainda não. Mas se baixarmos a guarda será. A turma da Boiada está tentando. Mas o movimento ambiental recebeu o apoio dos bons empresários, do Brasil e do exterior, que entenderão que está imagem está destruindo nossa reputação lá fora. Veja o exemplo da Carta de Convergência pelo Brasil Praticamente todos os ex-presidentes do Banco Central e Ministros da Fazenda convergem em apontar a irresponsabilidade de nossas políticas ambientais.