Memória, Cruyff e os famigerados golpistas





Johan Cruyff.

É tradição no futebol argentino, em todo 24 de março ou nas vésperas da data, os clubes do país se unirem em ações pelo Dia da Memória e Justiça alusiva ao aniversário do sangrento golpe militar que instaurou a ditadura do general Jorge Rafael Videla. Em 2021, ano que o golpe da Argentina completa 45 anos, os três maiores times do país (Boca, River Plate e Racing) criaram uma campanha para devolver o título de sócios torcedores desaparecidos no período da ditadura (1976-1983).

O Estudiantes de La Plata anunciou o plantio de 30 mil árvores, em referência ao número de pessoas mortas oficialmente pelo regime. Outros clubes da primeira divisão como o Lánús, San Lorenzo, Gimnasia, Independiente, Newells Old Boys, Rosário Central, Cólon, Talleres, Banfield e Argentinos Juniors, também se uniram na campanha com o lema “Nunca más!”

O dia 24 de março também é a data de falecimento do holandês Johan Cruyff, o maior jogador da história da Holanda e craque que comandou a “Laranja Mecânica”, uma das maiores seleções da história do futebol. E o motivo de eu citar o craque europeu em um texto que fala da memória do futebol argentino é uma curiosidade que ainda hoje rende especulações.

Depois de conduzir o carrossel em 1974 ao vice-campeonato no Mundial da Alemanha, era de consenso de todos que Cruyff comandaria a Holanda no ano seguinte no sonho do título mundial na Argentina. Ele estaria com 31 anos, no auge de seu futebol refinado, pronto para levar a revolucionária Laranja à glória. Mas não foi o que aconteceu. Cruyff se recusou a participar da Copa de 1978.

De todas as seleções que disputaram aquele mundial, os holandeses eram um dos que mais tinham conhecimento dos reais acontecimentos na Argentina. Havia uma pressão da imprensa holandesa para que sua seleção fosse a voz opositora ao regime de Videla.

Cruyff se recusou a jogar o mundial, mas nunca declarou o real motivo. A partir daí surgiram as especulações em torno de um suposto “boicote político”. Cruyff era considerado um “rebelde da bola” que não se furtava a debater assuntos para além das quatro linhas. Nunca se declarou uma pessoa de esquerda, mas levantava bandeiras de defesa classista, como por melhores condições de trabalho aos jogadores na época. Nos tempos que vestiu a camisa do Barcelona, foi um dos criadores da Associação de Futebolistas Espanhois (AFE) – o sindicato de jogadores do país.

Não se sabe ao certo se a recusa de 1978 foi política. Há uma versão que teria prometido à esposa que 1974 seria sua última Copa após o vazamento de notícias sobre noitadas nas concentrações da seleção holandesa no torneio da Alemanha quatro anos antes. Em 2016, Cruyff partiu deixando a dúvida no ar sobre o real motivo da desistência de jogar o mundial que foi marcado pela tortura da Junta Militar Argentina.

Ainda no espectro de 1978, outros holandeses fizeram uma campanha ferrenha de denúncia ao torneio. Foi caso do “Skan” (Solidariteits Komitee Argentinie-Nederland – Comitê de Solidariedade Argentina-Holanda). O grupo de apoio a exilados pedia que a seleção se recusasse a jogar em meio a uma ditadura ou que a cada jogo denunciasse o que estava acontecendo no país. A campanha na Holanda contra a Copa de 1978 foi tamanha que na cerimônia de abertura, junto com as imagens do estádio, as televisões do país também mostraram manifestações das Mães da Praça de Maio.

Há muitos boatos sobre uma suposta oposição de jogadores holandeses a Videla, mas de concreto mesmo foi a visita do zagueiro Win Rijsbergen às Mães da Praça de Maio.

Concluo essa conexão Argentina-Holanda desembarcando no Brasil nos dias atuais. Enquanto o povo argentino repudia o golpe e reverencia aqueles que lutaram contra a ditadura, o presidente do Brasil ganhou recentemente na Justiça o “direito de celebrar o golpe militar de 1964”.

Em 30 de março é aniversário do famigerado golpe no Brasil. Gostaria muito que o exemplo do futebol argentino servisse como luz para que nossos clubes e atletas também se unissem no grito de “Ditadura nunca mais!”.

*Fonte utilizada: Futebol à esquerda/Quique Peinado – Editora Madalena