Ualid Rabah. Foto: Leandro Taques

Nas últimas semanas a questão geopolítica envolvendo Palestina e Israel ocupou grande espaço nos meios de comunicação em razão da série de ataques de forças israelenses na Faixa de Gaza. Foram pelo menos 11 dias de bombardeios ininterruptos que deixaram o saldo de mais de 240 palestinos mortos, sendo 65 deles crianças, além de milhares de feridos. No último dia 20 foi noticiado que Israel aceitou um cessar fogo proposto pelo Egito. Um acordo de caráter “simultâneo” junto a ala militar do Hamas – grupo que controla Gaza – e que reagiu aos ataques sionistas.

A violência atual na Palestina tem como causa a negação de direitos básicos ao seu povo que vive sob um regime de apartheid. O anúncio do cessar fogo, que põe fim momentaneamente a mais uma rodada de ataques de Israel, foi comemorado pelos palestinos que seguem a espera do cessar da ocupação ilegal de seu território e dos crimes de guerra e lesa humanidade de Israel apontados em relatórios internacionais, como do Human Rights, principal ONG de direitos humanos do mundo, e do professor Richard Falk, enviado especial da Organização das Nações Unidas (ONU) na Palestina.

Na tentativa de entender melhor o que acontece na Palestina e no Oriente Médio, para além dessa última ofensiva de Israel, nossa reportagem bateu um papo com o Ualid Rabah, presidente da Federação Árabe Palestina no Brasil (Fepal), entidade de defesa da luta nacional palestina, de preservação da cultura, tradição e coesão entre as comunidades no Brasil.

Fomos recebidos por Ualid Rabah na Mesquita Iman Ali Ibn Abi Tálib, templo religioso da comunidade muçulmana em Curitiba. Na entrevista, o presidente da Fepal tratou de explicar como se dá o processo de legitimação e do lobby ao regime praticado por Israel, baseado na supremacia de um povo sobre outro, a narrativa do discurso de ódio contra o Islamismo e a opção do governo brasileiro em priorizar Israel em detrimento a parceiros estratégicos econômicos e geopolíticos.

A Palestina e a Israel sionista hoje

Ualid Rabah:
O que acontece na Palestina é um processo de limpeza ética em sua gênese. Tomar o máximo de terra com o mínimo possível de população. Foi tomado 76% da Palestina histórica e expulsaram 85% de sua população originária. Isso representou 65% de toda sua população, algo em torno de 750 mil pessoas na época. Hoje isso representa os 6 milhões de refugiados palestinos no mundo. Esses 6 milhões representam, segundo a ONU, 8% de toda população refugiada do mundo, mesmo os palestinos sendo 0,2% da população mundial.

É um modelo de construção artificial de um estado feito exclusivamente por estrangeiros, catados de todo os cantos do mundo para um projeto colonial de 25 anos (1923 a 1948), que expulsou a população originária de uma terra e criou um “estado novo”. Se essa premissa vencer estará sendo escrita uma possibilidade no direito e relações internacionais. Será permitido que aconteça um apartheid como o da África do Sul com o acréscimo da limpeza étnica. Isso é Israel.

Ualid Rabah. Foto: Leandro Taques

Deus étnico e racista

Sob o ponto de vista espiritual, iremos permitir que na Palestina – a chamada “Terra Santa” onde se construiu o monoteísmo – a Jerusálem, que é a metrópole do monoteísmo, seja aniquilada do mapa, riscada do mapa, tomada de 4 bilhões de pessoas no mundo que professam o islamismo e o cristianismo? Iremos permitir que Jerusálem e toda Palestina sejam “judaizadas” sob o prisma deste judaísmo sequestrado pelo Sionismo e por Israel? Tudo isso em troca de colocar no lugar um deus exclusivo, um deus étnico, um deus racista, um deus para um suposto povo autodeclarado?

Trata-se de uma falsificação histórica, uma instrumentalização e deturpação espiritual. Acabar com o regime de apartheid israelense não significa dizer acabar com Israel e as pessoas que estão lá que acreditaram no projeto Sionista, que na verdade foram enganadas e hoje participam de um experimento social genocida permanente.

Ualid Rabah. Foto: Leandro Taques

A Islamofobia e narrativa do ódio

A “Islamofobia”, que resulta na “arabofobia” e “palestinofobia”, é a janela de abertura para a intolerância religiosa e o discurso de ódio. É fruto do discurso hegemônico da “guerra ao terror” que foi internalizado no mundo pelos Estados Unidos. Um discurso que possibilita que você “satanize” um grupo humano e sua fé religiosa. Isso acontece com o povo muçulmano, isso acontece com as religiões de matriz africana.

Essa narrativa retira a autoestima da comunidade árabe, rouba sua contribuição histórica de grupo emigrante que ajudou a construir o Brasil. Amanhã ou depois é possível que ter um nome árabe se torne um problema. Frequentar essa mesquita pode ser um risco. O menino com o nome de ‘Samir’, como ele será tratado na escola? Não será mais só com aquele preconceito jocoso de outros tempos, de ser chamado de “turco”, mas também com ódio e violência.

A Islamofobia não é uma discussão meramente religiosa. Ela é um instrumento da promoção do racismo para subalternização de pessoas. Uma tentativa de reocupação colonial sob pretexto da guerra ao terror, destruindo tecidos sociais, econômicos e políticos de nações do Oriente Médio. Isso acontece no Iraque, na Síria, no Iêmen, Líbia, no Sudão, no Líbano. Tudo isso para benefício dos Estados Unidos e de Israel.

Ualid Rabah. Foto: Leandro Taques

O maior kibutz do mundo

Comercialmente, antes de falar dos países árabes, vou citar a China, que está diante de uma agressão absolutamente sem lógica. Em 2020 a China respondeu por mais de 60% do superávit da balança comercial brasileira e perto de 1/3 de tudo que nós exportamos. É a China que garante que tenhamos superávit. A mesma coisa o Irã, que em 2019, foi o 12º maior parceiro comercial brasileiro e o 4º maior superavit da balança brasileira. O fato de o Brasil ter se tornado o “maior kibutz do mundo” atendendo aos interesses ilegítimos de Israel, fez com que em 2020 o Brasil tenha perdido 1 bilhão de superávit em relação a 2019 com Irã. Isso significou a perda de R$ 5,5 bilhões para ficar ao lado de Israel, que nos últimos dois anos deu 1,5 bilhões de déficit ao Brasil. Ou seja trocamos R$ 15 bilhões de superávit com o Irã por cerca de R$ 8 bilhões de déficit com Israel. Isso é uma clara política de traição nacional, que não defende os interesses do povo brasileiro. E as consequências disso? Desemprego, perda de poder de capacidade geopolítica e comercial, perda de inovação da indústria, agricultura, perda tributária, prejuízo de inserção no mercado globalizado para o empresário.

Voltando a China, nos três primeiros meses de 2021 a China respondeu por mais de 80% do superávit brasileiro. Os Estados Unidos, por sua vez, nos deu 3 bilhões de déficit na balança nos últimos dois anos. Isso não quer dizer que tenha que se cortar relações comerciais com países que têm dado prejuízo, pois a gente sabe que oscila, mas Israel nunca deu lucro para o Brasil.

O mundo árabe tem aproximadamente 420 milhões de habitantes e 17 milhões de km quadrados com todos os tipos de riqueza. Israel tem 8 milhões de habitantes e 20 mil km quadrados. Esses números demonstram que é impossível reverter a balança comercial com Israel, é matematicamente impossível ter lucro com Israel, pois ele é um nanico, um anão comercial.

O PIB do Irã, nos critérios do FMI, é quase US$ 2 trilhões ao passo que o PIB de Israel é US$ 300 bilhões. Onde é melhor buscar parcerias comerciais? Irã é um player no ponto de vista cientifico, tecnológico, energético, bem localizado geograficamente no mundo. Mas o Brasil fica perdendo tempo com um regime de apartheid, baseado na limpeza étnica e na ideologia da supremacia racial.

Ualid Rabah. Foto: Leandro Taques

A pandemia na Palestina

Na Palestina, até abril do ano passado, a pandemia teve efeito mínimos. Até 11 de abril de 2020 só havia um palestino morto pela Covid e já havia dezenas ou centenas em Israel. Israel começou a ter problemas com sua população extremista, os ultraortodoxos judeus extremistas, especialmente em Jerusálem e Hebron. Esses extremistas, negacionistas da pandemia, se negavam a usar máscaras e adotar o distanciamento e que ainda por cima cuspiam em palestinos. E foram esses negacionistas que começaram a espalhar a pandemia em Israel e também entre palestinos.

O segundo ponto que destaco foi o impedimento ações de grupos de saúde palestinos quando as primeiras vacinas doadas, especialmente pela Rússia, chegaram na Palestina. Essas doses, cerca de 2 mil, seriam para os profissionais da linha de frente na Faixa de Gaza. Israel, num primeiro momento, impediu a entrada dessas vacinas e as segurou na alfândega e depois dificultou sua entrada no lado palestino.

Sob as regras internacionais e a Convenção de Genebra, a “potência ocupante e colonial”, no caso Israel, é obrigada a garantir serviços básicos, especialmente sanitários, à população ocupada. Portanto Israel, por lei, por ocupar ilegalmente o território palestino e controlá-lo, está obrigado a prover a vacinação ao povo palestino. E não o fez sob alegação que não tinha vacina suficiente, entretanto doou vacinas para Honduras, Guatemala, República Tcheca e Hungria. Em troca destes países reconhecerem Jerusálem como capital unicamente de Israel e transferirem suas embaixadas para lá. Ou seja, Israel usou da pandemia, da morte palestina, da negativa de vacinação, para fazer chantagem para benefício de seu projeto colonial.

Quando Israel se imuniza, às pressas, de imediato inicia um processo de violência poucas vezes visto contra os palestinos. Podemos dizer que se imunizaram para continuar o genocídio na Palestina.

Ualid Rabah. Foto: Leandro Taques

Projeto degenerado

Ou acabamos com o regime de apartheid de Israel ou acabamos com o direito internacional e os direitos humanos. Eles não podem coexistir. Então nós pedimos ao povo brasileiro, às lideranças, às organizações sociais, que se coloquem no lugar do povo palestino e reflitam se é lógico banhar as mãos do cidadão brasileiro, do contribuinte e do povo brasileiro, no financiamento de um regime de apartheid, um experimento social genocida.

Para além de defender a luta palestina, cabe a FEPAL defender a democracia no Brasil para que ela não seja contaminada por esse discurso de ódio. Temos que defender que esse país seja laico, que todas as fés religiosas possam se manifestar e coexistir e que se impeça que no Brasil se normalize um totalitarismo com cara de democracia.

Diante dos cadáveres a vista não dá pra dizer que alguém está alheio ou neutro do que está acontecendo. O sionismo é um projeto degenerado. Só pessoas moralmente degeneradas para defender esse projeto de Israel.