Humilhados

A violência se combate com inteligência, com investigação, e não colocando sob suspeita toda uma massa de pessoas sérias, honestas e trabalhadoras





Forças Armadas fazem operação na Vila Kennedy, zona oeste do Rio. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil/Fotos Públicas

Dr. Rosinha *

“Ao chegar do interior, inocente, puro e besta…”, como Raul Seixas, na canção Sessão das dez, eu não tinha noção do que era a cidade e muito menos do que era uma ditadura militar. Já menos “puro e besta”, em janeiro de 1973, fui conhecer o Rio de Janeiro. Sai da roça, do cabo da enxada, em fevereiro de 1969, durante a vigência do Ato Institucional n° 5, o famigerado AI-5, para morar em Curitiba.

A primeira sensação que senti na cidade foi medo. A segunda foi incapacidade da adaptação. O medo ‘normal’ do tudo que é novo e a incapacidade de adaptar-se a outro ritmo de vida, outros costumes, enfim, outra cultura. Quanta diferença! Mas não era só isso. Em Curitiba havia no ar uma sensação do não falar. O caminhar na rua significava ter que, de tempos em tempos, ser parado por policias e mostrar os documentos. “Inocente, puro e besta”, não sabia que todos éramos suspeitos, inclusive eu.

Sai da poeira da estrada, do trabalho penoso da roça para o asfalto das ruas. O desconhecido e a vontade de vencer: estudar e ser alguém. “Inocente, puro e besta” demorei a me adaptar. Quando escrevo “demorei”, é porque demorei mesmo, creio que mais ou menos dez anos.

Sair do cabo da enxada para viver na capital era uma aventura. Assim, resolvi não parar e fui buscar outras (novas) aventuras.

Em 1973, sem dinheiro nenhum, com uma mochila nas costas, saio para conhecer o Brasil. Vou para a estrada e de carona chego até Natal, no Rio Grande do Norte. Uma enorme aventura em pleno regime de exceção. Nesta altura já sabia que vivíamos sobre uma ditadura militar, só não sabia o quanto era agressiva, opressiva e criminosa. Afinal tinha vindo do “interior / Inocente, puro e besta”.

Durante a viagem minha primeira humilhação foi na cidade do Rio de Janeiro, mais precisamente na praia de Copacabana. “Puro e besta” admirava tudo aquilo que aos meus olhos se apresentava como uma maravilha. Melhor dizendo, para mim tudo era maravilha: as paisagens, as pessoas, o mar, a praia e a “liberdade” de estar ali.

Meu calmo passeio foi interrompido por alguns policiais. Me pararam e pediram os documentos. Mostrei-os. Perguntaram o que levava na mochila: respondi com calma o que carregava. Pediram que tirasse a mochila das costas. Tirei-a e entreguei. Sem nenhum cuidado e sem cerimônias abriram-na e viraram-na de boca para baixo despejando na calçada minhas roupas, toalha de banho, sabonete, escova de dentes e o saco de dormir. Reviraram tudo, nada encontram, pois nada havia. Após a revista se foram.

Eu, humilhado, recolhendo a minha roupa do chão e ao redor de mim uma pequena aglomeração de curiosos. Não sei se torciam pela minha prisão ou se sentiam pena. Tinha 22 anos e para mim foi um choque, nunca esqueci. Ali perdi um pouco da minha inocência e pureza. Ali senti o que é ser humilhado. Esta cena voltou a perturbar-me ao ver, no mesmo Rio de Janeiro, militares revistando a mochila de estudantes e de crianças.

Não vivo no Rio de Janeiro, mas em questão de violência, não há muita diferença da violência da Cidade Maravilhosa com a de São Paulo, Recife, Porto Alegre, Curitiba, etc. A violência, infelizmente, tornou-se algo natural no nosso país. Tão natural que é quase sempre invisível. Invisível porque as vítimas na sua grande maioria são negros, principalmente adolescentes e crianças.

No último final de semana circulou nas redes sociais uma mensagem de um estudante chamado Leonardo. Diz a mensagem: “Na favela em que moro, ao voltar da faculdade, um policial me abordou, abriu minha mochila, pegou meu caderno, passou o olho e me fez a seguinte pergunta: “Tá fazendo faculdade pra ter direito a cela especial?””.

Leonardo continua: “Há algumas semanas fui abordado três vezes em menos de meia hora. Na terceira abordagem questionei dizendo que havia sido abordado duas vezes nos últimos 20 minutos e que aquela abordagem era a terceira… A resposta do policial foi: “Eu não tenho culpa se você é um cidadão padrão para revista”.

Na época em que fui revistado, jovem e barbudo, talvez tivesse a imagem “padrão” de um cidadão de esquerda. Eu ainda não era, pois tinha chegado do interior “inocente, puro e besta”.

Leonardo, por sua vez, é um estudante negro de 30 anos de idade. Se ele é, de acordo com o policial, “um cidadão padrão para revista”, significa que todos os negros, no caso do Rio de Janeiro, estão colocados como suspeitos. Negros em geral e moradores das favelas em particular. Nas comunidades do Rio de Janeiro, assim como em outras cidades, a maioria do povo que ali vive é trabalhador.

Não há pesquisas, mas posso imaginar que se chegar a 0,03% o percentual de bandidos é um exagero. Dentro do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto o percentual é bem maior.

Todos e todas sabem que a maioria dos moradores e moradoras das favelas e bairros pobres do Brasil são pessoas trabalhadoras, que batalham o dia inteiro, inclusive nos finais de semana, para sobreviver. Se é assim porque submeter a humilhação todas as pessoas que vivem na favela e/ou bairros pobres?

A resposta pode ser encontrada numa simples definição: classe social. Esses pobres e miseráveis estavam começando a ser alguém, e para a burguesia brasileira, devem continuar escravos. Para que continuem escravos é preciso humilhar.  Por isso é necessário a revista das mochilas de crianças, adolescentes e jovens estudantes universitários.

A revista humilhante pode ter várias explicações, mas prefiro ficar com duas: a primeira é que humilhar uma criança ou um jovem pode torná-lo um medroso para sempre. Inibi-lo de qualquer iniciativa ideológica e politica. Mantê-lo sempre tal e qual um cordeiro às vontades dos poderosos. Certo que alguns podem não aceitar esse papel e passar a olhar a polícia e o exército como inimigos de sua liberdade. Digo a liberdade de ir e vir e de manifestar-se politicamente.

A segunda razão para revistar todos e todas é a própria confissão da polícia e dos militares interventores que são incapazes. Não estão preparados para investigações sérias e que os levem aos verdadeiros bandidos.

Violência se combate com inteligência, com investigação e não colocando sob suspeita toda uma massa de pessoas sérias, honestas e trabalhadoras.

Pode ocorrer de que eu esteja errado nesta minha segunda premissa. Suponhamos que eles saibam que os maiores bandidos estão fora da favela e estas ações são justamente para desviar a atenção do povo, atacando os pobres e miseráveis e não os incrustados nos palácios.

Que eles saibam que nos bairros de classe média e mesmo nos condomínios da burguesia têm bandidos. Vou ficar só com um exemplo: onde vive o senador Zezé Perrella, dono do helicóptero que foi apreendido com quase 500 quilos de pasta de coca? Não é na favela.

O que aconteceu com o dono do helicóptero? Continua senador e sequer é investigado.

Se ao “Ao chegar do interior, inocente, puro e besta…”, como diz Raulzito na sua música, hoje não mais somos e sabemos que há no Brasil uma ditadura e, que a intervenção no Rio de Janeiro é política, assim como foi a ditadura militar. E que serve o propósito de tirar o foco dos graves problemas sociais e da incompetência dos governantes.

E no Rio, aprofundando o golpe, militares em apoio aos governos golpistas e corruptos de Temer e Pezão, humilham o povo humilde e trabalhador. Humilham com as revistas e, como sempre ao longo da história, suspendendo as pessoas pela gola, esfregando-as na lama, chutando-lhes os colhões e soltando-os zonzos “em plena capital do país” (Ferreira Gullar em seu poema “Primeiros Anos”).

*Dr Rosinha é presidente estadual do PT Paraná e foi deputado federal e Alto Representante Geral do Mercosul.