“Uma sociedade sem seus artistas é uma sociedade morta”

Guilherme Weber e Marcio Abreu, os curadores do Festival de Curitiba, falam sobre suas escolhas, a peça "Domínio Público" com atores que sofreram perseguição em 2017 e Curitiba.





Domínio Público – Foto cedida pela assessoria de imprensa do Festival de Curitiba / Divulgação.

A frase título desta entrevista é do diretor e ator Marcio Abreu que ao lado do também ator e diretor Guilherme Weber assumem pelo terceiro ano seguido a curadoria do Festival de Curitiba. Eles são responsáveis por, a cada ano, propor um novo eixo curatorial e selecionar dezenas de espetáculos. Em suas mãos, o Festival teve mudanças significativas, sobretudo deixando de lado o foco nas estreias e passando a valorizar peças teatrais que dialoguem entre si.

Além disso, é proposta desta nova curadoria as coproduções que o Festival de Curitiba vem realizando. Neste ano, o destaque é a peça “Domínio Público”, criada e integrada pelos artistas Maikon K, Renata Carvalho, Wagner Schwartz e Elisabete Finger. Eles foram protagonistas de grandes polêmicas em 2017 ao serem atacados por setores mais conservadores da sociedade. O caso mais notório é o de Wagner Schwartz, que ficou conhecido como o Homem Nu do museu. Sua performance “La Bête”, que consiste em uma releitura da escultura “Bicho”, de Lygia Clark, em linhas gerais se desenvolve na interação entre o público e o bailarino. Sem roupas, Schwartz fica à disposição da plateia para que o manipule da forma que desejar. Após uma apresentação no Museu de Arte Moderna de São Paulo, contudo, um vídeo viralizou e despertou a ira de muita gente. O motivo: uma criança estava presente na performance e, pior, ela foi uma das pessoas a tocar no corpo do artista. A mãe da criança, que também estava presente durante a apresentação, é outra integrante de “Domínio Público”, a também dançarina e coreógrafa Elisabete Finger. Já o caso de Renata Carvalho envolveu uma decisão judicial contra uma apresentação do monólogo “O Evangelho Segundo Jesus, a Rainha do Céu”. Renata Carvalho é atriz e transgênero. Para Maikon K a proibição veio pelas forças policiais, quando foi impedido de realizar uma performance em Brasília. Ele passaria quatro horas dentro de uma bolha, sem roupas.

Guilherme Weber explica que a curadoria sugeriu a realização do espetáculo e deu condições para que seus realizadores a produzissem com total liberdade. “Eu achei muito sensível da parte deles (dos artistas) de terem batizado a peça como “Domínio Público”, porque eles tiveram seus trabalhos violentamente corrompidos em domínio público”, analisa o curador. Já Marcio Abreu ressalta: “Essa é uma ação do Festival que diz que o lugar da arte é fundamental e que não pode ser violentado por uma parte ignorante da sociedade”.

Sobre a recepção de uma peça com tal teor em Curitiba, os curadores são enfáticos em contrapor o senso comum que aponta a cidade como mais conservadora. Para Weber, a cidade é muito heterogênea, “inclusive por causa do próprio Festival, que tem uma função ao longo dos anos de abrir um pouco a cabeça dos curitibanos e trazer pensamentos e de colocar a cidade na rota de ideias mais arejadas”. Já para Abreu, “Curitiba é território de artistas combativos e inventivos que espalham sua arte pelo mundo. É uma terra de enormes, gigantescos escritores e escritoras”.

Guilherme Weber tem dedicado a maior parte de seu tempo à atuação, com presença em diversas séries televisivas. Na segunda-feira (12) ele volta ao canal Gloob com a estreia da segunda temporada de “Valentins”. No dia 18 de março é a vez da quarta temporada de “O Negócio”, série exibida na HBO. O ator também está na realização da série “Submersos”, uma coprodução Brasil e Argentina.

Marcio Abreu tem atuado sobretudo como diretor. É integrante da Companhia Brasileira de Teatro que exibe neste ano no Festival a peça “Preto”, no momento em cartaz no Rio de Janeiro. Foi dele também a direção de “Nós”, último trabalho do prestigiado Grupo Galpão, de Minas Gerais. Ainda em 2018, o diretor dará início às novas produções dos dois grupos teatrais.

Abaixo, leia a entrevista que o Porém.net realizou com os curadores por telefone. As conversas foram feitas separadamente, mas aqui são editadas juntas, já que suas respostas dialogam entre si.

Leia também nosso guia das dez peças imperdíveis deste Festival de Curitiba.

Guilherme Weber e Marcio Abreu. Fotos: Annelize Tozzeto / Divulgação.

A curadoria do Festival de Curitiba é feita sobre alguns pilares. Podem falar um pouco sobre isso?

Guilherme Weber: É uma coisa que nós propomos quando fomos convidados. A curadoria do Festival de Curitiba vinha trabalhando com as mesmas pessoas há 25 ou 24 anos. O Festival tinha como foco ser uma reunião dos melhores espetáculos do ano e, principalmente, o lugar das estreias nacionais. Então tinha esse grande foco no ineditismo. A imprensa toda se reunia na cidade para ver o que o Brasil veria. O que a gente propôs foi mudar esse viés do ineditismo, das estreias, não que ficasse proibido, mas que esse não fosse o mote principal. A gente propôs de, a cada ano, definir alguns vetores de pensamentos para reunir os espetáculos. A outra proposta que a gente fez é relacionada às coproduções, que o Festival passasse a coproduzir espetáculos. Na nossa concepção de curadoria, a figura dos curadores existe para provocar os artistas, para incitá-los, para trocar com eles e com os trabalhos deles. O outro vetor seriam as interlocuções, para fazer acontecer na cidade uma série de encontros, palestras, workshops, performances direcionadas. É uma coisa que o Festival não tinha. Esses foram os três pilares que a gente introduziu no Festival. É a assinatura da nossa curadoria.

Marcio Abreu: A principal coisa sobre essa ideia de ter um princípio, um conceito que nos ajude a desenhar e criar bases para pensar o Festival, é entender que este conceito existe na duração. Um dos grandes norteadores, desde que eu e Guilherme começamos a pensar o Festival, era que a gente pudesse desenvolver um pensamento a longo do tempo. A gente se propôs a estar na curadoria do Festival de três a cinco edições. Esta é a terceira. Uma curadoria é também uma intervenção no campo da cultura, no campo social. Ela não é exatamente um trabalho estrito, desvinculado, isolado da programação. A gente criou as questões com as quais gostaria de trabalhar, mas não só. Há questões indesviáveis como vozes emergentes, corpos, ocupação da cidade, pensamentos que criam fricções entre os campos diversos da arte, pensamento mais expandido sobre a cena, dimensões políticas possíveis na arte de hoje… A gente quis trabalhar com ideias que fossem se desdobrando e se apresentando sobre novas formas a cada uma das edições. Claro que isso tem a ver tanto com o meu pensamento quanto com o do Guilherme, como curadores e como artistas. É importante dizer que esta é uma curadoria de artistas.

Guilherme Weber: A cada ano a gente escolhe uma frase ou um pensamento que vai nortear a reunião desses artistas. No primeiro ano foi “Onde quer que eu vá tem um Brasil, que quer o Brasil que me persegue”, que era uma reunião de uma frase do (poeta barroco) Gregório de Matos com uma do Beijo AA Força, uma banda de Curitiba; no segundo ano foi “Só me interessa o que é não é meu”, que é uma frase do (poeta modernista) Oswald de Andrade; e neste ano é “Se é de corpos e cidades que devemos falar”, que é a frase que abre a perícia médica sobre o assassinato do (cineasta e poeta italiano) Pier Paolo Pasolini. A frase abre um pouco o olhar para os corpos, a narrativa dos corpos, que corpos são esses… Desde o corpo Queer até o corpo bizarro, o corpo que funciona como uma pele em branco dos atores, o corpo que homenageia as instituições culturais, até o movimento desses corpos na cidade, que narrativa esses corpos propõem na cidade, que narrativa a cidade propõe aos corpos, a reocupação dos espaços urbanos. Estes são alguns dos vetores, todos muito sutis, que a gente está propondo para o Festival neste ano.

Nesta esteira da questão “corpo”, vocês propõem também a peça “Domínio Público”.

Guilherme Weber: “Domínio Público” é o grande projeto da curadoria, porque se insere em todos os vetores que a gente sugeriu. É uma coprodução do festival, é uma reunião de corpos proibidos e é uma reunião de corpos que ocuparam as cidades e foram proibidos de ocupar as cidades. É uma resposta a essa proibição.

Marcio Abreu: Na verdade a gente tem outras coproduções. A ideia de que o Festival fosse também coprodutor está desde o início no nosso conjunto de ideias e ações. “Domínio Público” é um trabalho que inclui o artista Wagner Schwartz, um dos artistas residentes de nossa curadoria no Festival. A gente decidiu desde nossa primeira curadoria que o Festival teria artistas residentes. Isso significa que a gente acompanha o trabalho de determinados artistas em todas as edições que a gente fizer a curadoria. “Domínio Público” envolve também outros artistas que foram vítimas de censura ou violência por parte da polícia, do Estado, da justiça brasileira e de uma parte bastante conservadora e ignorante da sociedade. O Festival é também um lugar para jogar luz no trabalho de artistas como eles e na importância do lugar da arte. É um trabalho inédito no qual esses artistas refletem sobre a censura e a violência que sofreram, devolvendo à sociedade em forma de arte uma experiência que une e que coloca o pensamento e a ação artística deles. Isso me parece uma ação fundamental para um festival hoje no Brasil. Pensar o seu tempo, mas também valorizar o lugar da arte, a importância fundamental da arte em uma sociedade. Uma sociedade sem seus artistas, sem sua arte, sem sua cultura é uma sociedade morta ou em vias de morrer. Essa é uma ação do Festival que diz que o lugar da arte é fundamental e que não pode ser violentado por uma parte ignorante da sociedade, do estado brasileiro golpista.

Wagner Schwartz durante a performance “La Bête”. Foto: Caroline Moraes / Divulgação.

Como vocês esperam que seja a recepção do público?

Guilherme Weber: Nossa, não tenho a menor ideia. Espero que o público receba. Se será com flores ou com facas, é sempre uma incógnita. Agora, eu achei muito sensível da parte deles (dos artistas) de terem batizado a peça como “Domínio Público”, porque eles tiveram seus trabalhos violentamente corrompidos em domínio público. Ninguém estava muito interessado e ninguém sabia do que se tratava. Pegaram o trabalho dos quatros, especialmente dos três (Maikon K, Renata Carvalho, Wagner Schwartz), e opinaram, rescontextualizaram… Então é dentro desse lugar que eles irão responder. Eles têm total liberdade. Eu não sei o que estão fazendo. A gente só propôs o espetáculo, juntou (os artistas), deu condições materiais para que se encontrassem e estamos abertos como um espectador. A função do curador é sugerir, provocar, mas não domesticar.

Marcio Abreu: Eu tenho as melhores expectativas. Os artistas que fazem parte do “Domínio Público” são artistas com trajetórias vibrantes nos seus trabalhos. Além de ser um encontro de artistas que passaram por essas violências, também é o encontro de diferentes artistas que trabalham em campos específicos da arte e esse é também um pensamento que faz parte do eixo curatorial. O encontro, a fricção, as possíveis relações entre distintos campos da arte. Wagner Schwartz é um coreógrafo, um bailarino, um criador, reconhecido no mundo inteiro; Renata Carvalho é uma atriz que tem um trabalho desenvolvido no teatro; Elisabete Finger é uma dançarina, coreógrafa, tem seu trabalho também reconhecido em outros países; Maikon K é um artista curitibano da performance, do teatro, que leva a arte feita no Paraná para várias partes do Brasil, é um importantíssimo artista. O público só pode receber isso com celebração, com alegria, felicidade e entusiasmo.

Pergunto sobre a recepção do público por causa dessas polêmicas que aconteceram em 2017 e por Curitiba ser apontada como uma cidade muito provinciana. Curitiba ainda é uma cidade reacionária?

Guilherme Weber: Eu acho que esses títulos, “reacionária” e “provinciana”, foram recebidos pela cidade há muito tempo. Acho exagerado dizer que hoje Curitiba é uma cidade conservadora ou bastante reacionária. Ela pode ter sido palco de situações assim, mas é uma cidade já muito heterogênea, inclusive por causa do próprio Festival, que tem uma função ao longo dos anos de abrir um pouco a cabeça dos curitibanos e trazer pensamentos e de colocar a cidade na rota de ideias mais arejadas, mais contemporâneas. Seria injusto por em Curitiba carimbos tão radicais.

Marcio Abreu: Curitiba não é uma cidade mais conservadora do que outras cidades. Faz-se uma propaganda de Curitiba bastante sórdida, como por exemplo essa ideia de “República de Curitiba”, com esse juiz ignóbil que não tem condição de estar em um cargo público e que é um epítome sobre uma falsa propaganda acerca da cidade. Curitiba é um celeiro de artistas. Curitiba é a terra de Paulo Leminski, um revolucionário da arte, uma pessoa que fez uma insurreição pela linguagem. Curitiba é território de artistas combativos e inventivos que espalham sua arte pelo mundo. É uma terra de enormes, gigantescos escritores e escritoras. É uma terra de músicos inesquecíveis, de poetas deslumbrantes. A gente não pode falar que Curitiba é uma terra só dessas pessoas conservadoras. Essa não é a única imagem da cidade, é uma delas. Inclusive é uma imagem construída. É evidente que Curitiba tem uma classe conservadora e ignorante, assim como tem uma classe iluminada, combativa, com valores republicanos e de liberdade. Outras cidades no Brasil, como São Paulo, também têm. O Rio de Janeiro, a cidade onde moro, também tem. É uma cidade que elegeu um prefeito como o (Marcelo) Crivella. Vender Curitiba dizendo que é apenas conservadora, é um engano. Curitiba é também uma cidade que se insurge, que é revolucionária, que é brilhante, que tem um pensamento arejado.

Guilherme Weber: Mas “Domínio Público” será apresentado dentro de um festival e a plateia que irá assistir será provavelmente uma plateia mais jovem, contemporânea. Eu não sei se a gente vai conseguir, dentro do Festival, responder ao público de classe média que atacou esses projetos. Mas como esse público atacou sem ter visto, essa resposta também pode vir através das redes sociais e da própria imprensa. No lançamento de “Domínio Público” em Curitiba, a imprensa tem uma responsabilidade muito grande de fazer essa resposta acontecer. A imprensa dar atenção a esse espetáculo é ajudar a frear esse movimento reacionário que assombrou o Brasil em 2017.