Saúde na linha de produção: a fábrica de novos médicos





Foto: Marcos Santos/USP Imagens/Fotos Públicas

Sil Vaillões*

Quando se pergunta, em uma sala de aula de cursinho, quais são os cursos que eles querem fazer na faculdade, para os quais estão estudando, as mãos se levantam, em 90% das vezes, para Medicina. Não raro, há pessoas que já são formadas, que já têm suas carreiras, mas que estão ali porque querem estudar para começar tudo novamente. A Medicina é, hoje, o curso mais visado nos cursos pré-vestibulares. Vira propaganda da instituição quando um estudante é aprovado nesse curso.

Iniciar um curso de graduação não é tarefa fácil, no entanto, iniciar um curso de medicina é ainda mais complicado. Não falo apenas dos três anos médios de estudo para conseguir a aprovação, mas sim, da dificuldade de enfrentar os seis anos restantes de curso, com todas as exigências pedidas. Sem falar da residência. Os estudantes precisam estar disponíveis para estudar o dia todo. Eles precisam comprar materiais. Eles precisam aguentar a pressão dos professores, que, por muitas vezes, os humilham, fazem piadas machistas, homofóbicas, sem falar da constante lembrança: se não aguenta, volte para casa. Há uma enorme fila querendo ocupar o seu lugar. Os abusos são variados.

Uma amiga minha, filha de professores, conseguiu, após dois anos de estudos ferrenhos, entrar para o curso de medicina de uma universidade estadual. Acompanhei sua dificuldade de adequar-se à turma, aos valores que são considerados. Criada por pais professores, não tinha carro do ano, roupas de marca, dinheiro para torrar em festas. Já no hospital, nos estágios finais, precisava desembolsar uma grana alta por semana para ajudar a pagar o lanche dos professores, que trazia várias exigências: pães específicos, quitutes de determinada padaria (a mais cara da cidade), variados tipos de sucos e refrigerantes. Como manter tudo isso?

A verdade é que a maioria das pessoas que está querendo cursar medicina sequer tem ideia do que é a realidade de um médico, a prática efetiva. Ficam maravilhados pela possibilidade de um salário alto, respeito na sociedade, estabilidade e status. Dessa forma, cegam para as outras realidades que enfrenta um médico, ainda mais em começo de carreira: muitos plantões, vários empregos, dificuldades de se adequar à rotina, muito trabalho, cansaço, pouco descanso, medo de errar, pressão de lidar sozinho com questões que, antes, eram resolvidas por outra pessoa. De acordo com o Jornal da USP, é comum que um médico assuma multiplicidade de vínculos de trabalho (quase metade dos médicos tem três ou mais empregos); possuem longas jornadas (dois terços trabalham mais de 40 horas semanais), a realização de plantões (45% atuam em pelo menos um por semana). Como suportar uma rotina dessas, apenas pensando no retorno financeiro?

Apesar da dificuldade da profissão, a média de formados cresceu de 430 mil para 600 mil na última década. Como afirma o Jornal da USP, isso se deve ao fato de que muitos cursos de medicina foram abertos pelo país, principalmente em instituições privadas. Desse número, são poucos os que vão trabalhar em estados de interior ou localidades de difícil acesso, ficando distribuídos, quase em sua maioria, em cidades como São Paulo e outras capitais. Isso sem comentar o fato de que o número de médicos que busca o trabalho no SUS ainda é muito baixo. Tão baixo que, em 2013, como uma das medidas do Programa Mais Médicos, houve a inserção de obrigatoriedade do trabalho no SUS para que o estudante de medicina se formasse. A medida causou revolta, mas o governo de Dilma, à época, alegou que não há possibilidade de manter tanto investimento para a formação de mais profissionais, sem que haja preocupação com o retorno social. Muitos são os que se formam e não querem, de maneira alguma, trabalhar na saúde pública.

Falando em termos de dinheiro, o retorno financeiro é garantido. A Revista Exame, de abril de 2014, elencou os maiores e menores salários dentro das especificidades médicas, apresentando uma média salarial que vai de sete mil reais (para proctologistas) a 19 mil reais (para cirurgião plástico). De acordo com a revista, um médico que possua mestrado e doutorado pode ganhar quase três vezes mais do que um profissional que tem apenas graduação. As qualificações só aumentam os valores a receber: se o profissional fala outra língua, a média salarial por mês é de oito mil reais.

É claro que esses números encantam um jovem de 17 anos. Comparados com a média salarial, por exemplo, de um professor, eles são assustadores. De acordo com o INEP, um professor ganha, atualmente, no Brasil, menos do que 3,500 reais. Os professores de escolas privadas estão na base da pirâmide de quem ganha menos: 16,24 reais por hora/aula, sem falar no fato de que esses profissionais não têm direito à hora-atividade, realidade da rede pública de ensino. Ou seja, ninguém vai querer enfrentar quatro anos de graduação, dois de mestrado e mais quatro de doutorado para ganhar o que ganha um professor hoje. Falo por experiência própria: sou doutoranda, com 15 anos de experiência em sala de aula, mas estou desempregada, pois a universidade na qual eu trabalhava resolveu mudar minha disciplina para EAD (Ensino a distância). Tenho pelo menos quatro amigos, doutores em suas áreas, que estão sem emprego estável, quando não estão SEM emprego. Acabam aceitando trabalhar em locais que pagam menos, pois precisam se sustentar.

É triste ver a realidade em que estamos. É triste ver que ninguém mais quer ser professor. É triste ver policiais, advogados, biólogos deixando suas profissões para estudar em cursinho e tentar entrar em medicina. É triste ver que essas pessoas poderiam, ao invés de estar estudando para medicina, fazer o que realmente gostam, visto que, se gostassem tanto de medicina, teriam feito essa escolha logo no início de sua vida profissional. Muitos nem suportam sangue, feridas, lidar com pessoas, lidar com dor. Mas estão ali por pensar que a profissão vai lhes trazer retorno financeiro, respeito social, prestígio e vantagens.

Esses dias, estava em um local público e ouvi dois estudantes de medicina comentando que tem muita gente entrando no curso. Só em Cascavel, há dois cursos de medicina, um público e um privado: ambos disputadíssimos. Eles diziam que as instituições deveriam “segurar” a entrada de mais estudantes, pois a tendência é o mercado desvalorizar, com tanta gente se formando em medicina. Falavam do valor dos plantões, que antes eram muito mais vantajosos. Não tive coragem de me manifestar. Como fazer com que entendessem? Não é o curso que deve ter a entrada mais “dificultada” ainda. Deveríamos estar lutando pela valorização das outras profissões.

Como iremos formar médicos daqui a alguns anos? Quem irá trabalhar em nossas salas de aula? É triste ver que a sociedade está caminhando para o enaltecimento cada vez maior dos valores financeiros. Como podemos mensurar o valor de um professor, de um advogado, de um engenheiro? Como lidar com um mercado que nos coloca em caixas, apenas considerando o retorno e valor financeiro? Não tenho resposta para essas tantas perguntas. O que sei é que, apesar de financeiramente não ter tanto retorno, não há nada que pague a sensação de bem-estar que é experenciar a sala de aula, dividir com os estudantes o que aprendi, a duras penas; estar e viver com eles um período da vida não pode ser mensurado em valores financeiros. Porém, pior, não pode ser mensurado em valores tão baixos para a sociedade, a ponto de nenhum jovem mais querer ser outra coisa que não seja médico.

A medicina é exercício de cuidado e respeito com o outro, de compreensão; é uma prática de amor. Talvez, seja por isso que não encontremos mais médicos que nos escutem, visto que a maioria olha para o ser humano apenas como um órgão doente, não como um todo. Ser médico é sim uma doação ao outro. Médico de verdade. Será que a “fabricação” em larga escala de formados nessa área está se preocupando com o real exercício da medicina em nossa sociedade?

*Sil Vaillões é professora formada em Letras, com habilitação em inglês. Mestre em história da educação e doutoranda em Letras pela Unioeste – Cascavel.