Do auto-ódio ao suicídio político coletivo

A doença da psiquê social brasileira vista na condenação de Lula





Foto: Leandro Taques

Por Ana Carolina Dartora*

Os vários séculos de colonialismo europeu nas Américas deixaram marcas profundas na psique das sociedades colonizadas, como por exemplo, o auto-ódio e auto-negação. Nos consolidamos como nação brasileira sobre os estigmas impostos pelos colonizadores, a saber, a necessidade de branqueamento e adoração por tudo que é externo e diferente de nós, no fundo não saiu ainda do imaginário de muitos brasileiros que tudo que é nosso é preto é pobre e ignorante.

Aqui no Brasil esses traumas são revisitados e revividos nos episódios diários de violência simbólica, praticados pelos meios de comunicação tradicionais, e mais explicitamente pelos recentes meios de comunicação, como canais no youtube, e páginas do facebook. Algumas dessas páginas apelidadas de “fakenews” reforçam antigas ideologias racistas, criminalizam os pobres, confundem e ocultam as razões estruturais da pobreza, reforçam falsos estereótipos negativos sobre o povo brasileiro, distorcem e até criam noticias falsas.

As redes sociais e seus algoritmos criam ninhos sociais e também ideológicos, por exemplo “O sul é meu país” ou “República de Curitiba”, grupos extremamente preconceituosos. Esses algoritmos reúnem no painel de notícias do facebook as pessoas com que mais se interage e os assuntos mais pertinentes ao que se publica ou curte sobre posicionamentos que são de antemão já endossados por esses grupos, inclusive politicamente, sua visão de mundo é reduzida, confirmada repetidamente e compartilhada pelos semelhantes na rede, mesmo que sejam noticias falsas, tornam-se verdades quase impossíveis de serem desconstruídas, esse fenômeno chama-se pós-verdade.

Dessa forma não existe espaço para o contraditório, esses ninhos sociais são exercitados para intolerância e ignorância, panorama que aliado ao auto-ódio e auto-negação, presente no DNA da nação brasileira possibilitou o desmantelamento do estado democrático e de direito, visto no repúdio ao bolsa-família, minha casa minha vida, às cotas raciais e tantas outras politicas públicas, ações afirmativas e de reparação.

Torna-se assim objeto da psicologia o estudo da situação política e social do Brasil, pois o que se vê são parcelas de uma população majoritariamente pobre odiando pobre que majoritariamente miscigenada se diz europeia, exigindo um modelo político que não os beneficia, que não cabe na realidade brasileira, não representa o desejo da maioria dos brasileiros, nem possibilita a transformação da realidade de suas próprias vidas de modo algum, que de maneira atroz já está os oprimindo, isso é uma patologia psíquica.

Tal paradoxo expressa-se claramente nos posts de ódio que endossam todo o processo de aviltamento da democracia desde o golpe que é mal visto em quase todo o globo. Esses nichos não percebem sua própria agonia, com a tomada de tudo que significa qualidade de vida, Educação, Emprego, Renda, Segurança, DIREITOS.

Cegamente aplaudem a judicialização do golpe, odeiam o projeto político que mais investiu em educação, mais criou universidades públicas, que priorizou inclusão com ações reais a população economicamente excluída, “negros e pobres”, que mudou trajetórias. Esses nichos não se dão conta que sua indignação é externa a eles, planejada por setores dominantes para a instalação de outro projeto político, plantada e cultivada diariamente pela distorção e ocultação de alguns fatos e exacerbação de outros.

Alimentaram nesses nichos um falso desejo de justiça, sentem-se muito nobres em não se importarem com nada além da criminalização de um único partido e de uma única figura. Não enxergam problemas históricos da nação e que na última década apenas começavam a ser reparadas.

A manipulação midiática chegou a tal ponto que a verdadeira justiça, aquela que mesmo quando pune age sob o princípio da humanidade é trocada pelo sentimento de vingança, sentimento que possui objetivos destrutivos e nada tem a ver com justiça e sim com um desejo de retaliação, que visa uma satisfação individual, isso não pode ser comparado a um valor, ou a qualquer bem.

Esse desejo pessoal de vingança percebeu-se nas comemorações de ânimo exagerado pelo impeachment da ex-presidenta Dilma e pela condenação do ex-presidente Lula, exagero que não se observou em nenhum outro caso de condenação de políticos de outros partidos ou falta delas.

Percebe-se então que alimentaram o auto-ódio, desse nicho que se acha muito “esforçado”, que muito “trabalha”, para nem pensarem em o que de fato são, os incitaram a detestar ver-se naquele partido de pobre, naquele ex-presidente apenas com curso técnico, chamado o “analfabeto”, metalúrgico, simples trabalhador como a maior parte dos brasileiros, nossos avós, pais, irmãos e primos. Lula foi ridicularizado sistematicamente por ser um igual da massa brasileira, trabalhar por ela, falar como ela e para ela, durante décadas desde que ousou apontar as desigualdades.

Sabe-se que o processo de golpe ainda não acabou, mas talvez agora tendo esses nichos sentindo-se “VINGADOS”, possam florescer disposição para buscar informação além dos veículos de comunicação de massa, memes preconceituosos de seus algoritmos do facebook, notícias distorcidas das fakenews e pós verdades.

Talvez possam questionar a realidade que vivem, descriminalizar a pobreza nacional, ouvir outras vozes, perceber outros sujeitos, a si mesmos e desmistificar em suas consciências as desigualdades.

Talvez agora possam acordar e perceber o que levaram a cabo, talvez percebam a doença social que os leva odiar e condenar a si próprios a um sistema politico inóspito, a violentar-se de formas subjetivas e objetivas cotidianamente e parem de cometer suicídio político coletivo.

Ana Carolina Dartora é feminista negra, bacharel em História, mestre em Educação pela UFPR e militante da Marcha Mundial das Mulheres