Colônia Cecília: memória presente!

Excursão ao Memorial Anarquista reuniu gerações e reviveu memória da comuna rural idealizada por imigrantes italianos em terras paranaenses





Confraternização no Memorial Anarquista da Colônia Cecília

A primeira vez que ouvi falar da Colônia Cecília foi como estudante de jornalismo, não lembro exatamente o ano, mas foi entre 2000 e 2004, época da graduação. De lá pra cá li alguns textos, assisti alguns vídeos e reportagens, mas sempre com aquela vontade de conhecer pessoalmente o local onde imigrantes italianos fincaram os ideais e a bandeira rubro-negra do anarquismo no solo da então Província do Paraná, durante a transição do período da Monarquia para a República no Brasil.

Em várias viagens à Curitiba, no trajeto da BR-277, ao passar pela região de Palmeira, nos Campos Gerais, sempre batia aquela vontade de desviar o roteiro para conhecer o primeiro e único memorial anarquista do Brasil, inaugurado há dois anos, na localidade de Santa Barbara, área rural a cerca de 20 quilômetros do centro da cidade de pouco mais de 33 mil habitantes.

A oportunidade perfeita surgiu há alguns dias por uma iniciativa do casal João Victor e Francielle Kerstin Brum. Um programa em família que reuniu gerações. Por lá estiveram personagens da “turma de 68” que resistiu à repressão da ditadura militar, como a jornalista Elizabeth Fortes e a historiadora Judite Trindade, amigas que foram presas juntas na época dos anos de chumbo. E a futura geração das pequenas Amora e Mariana, de 2 e 4 anos respectivamente, que aproveitaram o domingo de sol para brincar nos gramados de uma terra com tanta história.

Judite Trindade e Elizabeth Fortes: historiadora e jornalista que lutaram contra o regime militar. Foto: Partigianos

Visitantes recepcionados pela família Agottani, descendentes dos anarquistas que habitaram a Colônia Cecília, comuna rural que existiu entre os anos de 1890 e 1894. Uma recepção com polenta, vinho colonial e suco de uvas cultivadas por Evaldo Agottani, nosso guia neste evento que iniciou com a apresentação do memorial.

Inaugurado em 2016, o espaço resgata parte da história do primeiro experimento anarquista do Brasil. O formato é de uma praça, que vista de cima, tem formato de um “A”, símbolo mundial do anarquismo. Em seu entorno uma casa de madeira, com objetos pessoais dos antigos colonos e oito totens que resumem através de mosaicos a trajetória dos quatro anos da Colônia. Um espaço mantido pela família Agottani, com poucos recursos, mas com muita dedicação.

Resgate histórico

Formada em 1890 por um grupo de libertários mobilizados pelo jornalista e agrônomo italiano Giovanni Rossi, a Colônia Cecília reuniu principalmente imigrantes italianos. Seu principal idealizador buscava instaurar uma comunidade capaz de ser pioneira em praticar e propagar conceitos como: trabalho coletivo horizontal, valorização do humano e amor libertário. Em seu auge, a colônia chegou a abrigar 300 pessoas. A organização do trabalho se dividia entre colonos responsáveis pela lavoura, pecuária, os artesãos, educadores e tarefas de casa.

Alguns percalços, segundo pesquisadores, levaram ao fim da Colônia Cecília; entre eles a contribuição desigual entre citadinos e camponeses; a dificuldade de lidar com o conceito de amor livre; as dificuldades da transição de monarquia para república; a hostilidade de moradores que já habitavam a região – especialmente os poloneses de comunidades católicas e conservadoras; e o assédio do estado em recrutar colonos para combaterem a revolução federalista.

À época Rossi tratava o experimento como um sonho que se tornaria um canteiro para novas colônias com a mesma perspectiva de sociedade. Essa tentativa que foi levada ao efeito no Paraná inspirou outras comunas rurais, como a Colônia Cosmos, em Santa Catarina, e a Colônia Varpa, em São Paulo – experiências não tão conhecidas como a do Paraná. Dessa experiência em terras paranaenses restaram alguns relatos de ex-colonos e seus descendentes, entre eles os Agottani.

Resistir é preciso!

Após conhecermos um pouco dessa história, nossa visita ao Memorial Anarquista de Colônia Cecília foi finalizada com um show da Partigianos, banda formada por músicos de várias vertentes do cenário alternativo curitibano, e que tem no repertório o resgate de hinos de resistência ao fascismo. Já falei outras vez deles aqui no Porém, como quando estiveram se apresentando na Vigília Lula Livre.

Banda Partigianos embalou a tarde com hinos revolucionários. Foto: Julio Carignano

Vlad Urban, vocalista da banda, destaca que a ideia de tocar no memorial se justifica pela própria criação da Partigianos, que além de tocar hinos revolucionários, tem a proposta de resgatar ideais de igualdade, liberdade e solidariedade. Ele aponta a importância de resgatar esse episódio da nossa história que, apesar de ter acontecido a aproximadamente 80 quilômetros da capital, é tão pouco reverenciado.

De fato ele tem razão, a própria histografia da esquerda brasileira parece ter feito questão de minimizar durante décadas iniciativas como a da Colônia Cecília ou como a Greve Geral de 1917, a primeira de grande abrangência nacional no Brasil. Felizmente alguns pesquisadores reavivaram esses registros históricos, dando a devida importância que merecem.

Iniciativas como a excursão ao Memorial são fundamentais para que a história não caia no esquecimento. Afinal, a memória é um campo em eterna disputa e revive-la é tarefa de todos e todas que lutam por uma sociedade mais justa e igualitária. Tanto para gerações calejadas da luta como a de Judite e Elizabeth quanto para a geração futura das pequenas Amora e Mariana.

Para quem tiver interesse em visitar o Memorial da Colônia Cecília, as visitas podem ser pré-agendadas pelo telefone: (42) 3909 5034. Também como dica disponibilizo o PDF da obra = “Colônia Cecília – Uma Aventura Anarquista na América”, de Afonso Schmidt, publicado pela primeira vez em 1942, pela editora Anchieta.

Outra dica é o filme “La Cecilia” (1975), de Jean Louis Comolli, que vocês podem conferir logo abaixo.