A verdade e a memória dos jornalistas

A ditadura militar atacou o direito à informação de forma brutal e vários profissionais da imprensa foram perseguidos, torturados e assassinados





Arquivo: Memorial da Democracia

Recuperar a memória, não com o objetivo de saudar o passado, mas para que o futuro seja reescrito com páginas diferentes. Essa frase foi dita pelo saudoso escritor uruguaio Eduardo Galeano ao jornalista Lucio de Castro no documentário Memórias de Chumbo: O futebol nos tempos do Condor. A série – dividida em quatro partes – mostra como as ditaduras militares que integraram a Operação Condor na América do Sul estiveram presentes no esporte, transformado o futebol em ferramenta de propaganda dos regimes autoritários.

A Operação Condor – a multinacional do terror – foi o grande elo entre os países que passaram por períodos sombrios da história do Cone Sul. Período sempre rememorado no no fim do mês de março. Nossos “hermanos” lembraram os 43 anos do golpe na Argentina no último dia 24 de março, enquanto que no Brasil tivemos o nosso ‘dia D’ iniciado em 31 de março e concluído em 1º de abril de 1964.

Esse tema sempre me chamou a atenção, não somente enquanto ‘curioso’ e entusiasta da história de nosso continente, mas também na condição de jornalista profissional. Lembremos que a grande imprensa foi artífice do golpe. Participou em 1964 de toda sua conspiração. A família Mesquita [proprietária do Grupo O Estado de São Paulo] cedeu veículos aos militares e, inclusive, comprou armas para se preparar para uma eventual “revolta”. Nesta mesma fase veículos de comunicação participaram da organização da “Marcha da Família com Deus e pela Liberdade”. Somente um jornal na época, o Última Hora, de Samuel Wainer, fazia oposição a isso. Apenas entre 1971 e 1974 começam a se deslocar do golpe e em 1976 a censura do regime chega ao Estadão, através das receitas de bolo e dos poemas de Camões.

E mesmo diante dessa posição subserviente e sabuja ao golpe por parte de empresas e empregadores, as garras do Condor cercearam o direito à informação de forma brutal e vários profissionais da imprensa foram perseguidos, torturados e assassinados na longa noite que perdurou 21 anos em nosso país.

Lembro da ocasião de uma palestra do Gilney Viana, ex-deputado, assessor especial da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e coordenador do Projeto Direito à Memória e à Verdade da SDH em que fez uma convocação aos jornalistas. Foi num congresso da categoria no Acre.

O ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) fez um chamado aos jornalistas brasileiros a assumirem uma postura militante em relação aos crimes e violações contra os direitos humanos ocorridos no período da ditadura civil-militar. Comungo dessa opinião, precisamos assumir uma postura, uma posição, uma vez que companheiros foram exilados, torturados e mortos no período. Não há espaço para omissão, não há relativismos quando se trata do golpe de 1964.

Lembremos que sindicatos da categoria sofreram intervenções e as redações foram as primeiras a serem visitadas pelos milicos. Os profissionais progressistas, àqueles que trabalhavam com comunicação de alguma forma e que eram ligados aos meios alternativos foram os primeiros perseguidos pelo regime. Levantamentos preliminares apontam que pelo menos 24 jornalistas teriam sido mortos durante os 21 anos de ditadura no Brasil, fora os agredidos, torturados e desaparecidos. Acredito que esse número seja bem maior.

Alguns casos são emblemáticos, como do jornalista Mario Alves, que dirigiu os jornais Novos Rumos e Voz Operária, morto aos 46 anos sob brutais torturas em 17 de janeiro de 1970 na cidade do Rio de Janeiro e, é claro, a morte de Vladimir Herzog. Antes de ser assassinado pelos torturadores do Doi-Codi, Vlado – como era conhecido – foi vítima de uma campanha difamatória pela parte da imprensa que apoiou o golpe militar. A exigência era que “no mínimo” ele fosse preso e silenciado em virtude de suas posições. A campanha fascista contra Herzog foi denunciada por alguns colegas, como Alberto Dines (que faleceu no ano passado), porém o que não impediu o desfecho trágico de Vlado.

Episódios de uma ditadura odiosa, que atacou frontalmente a liberdade de imprensa, de expressão e de informação. Um regime que fez prisões sob a forma de sequestro, deu um golpe de estado, destitui um presidente eleito, acabou com partidos políticos, impondo o bipartidarismo no país. Um regime que jogou na ilegalidade dezenas, centenas, milhares de pessoas. Acredito ser reducionista falar em ditadura e citar apenas as torturas e assassinatos. Foi além, cassou direitos da classe trabalhadora, direitos civis, cassou a esperança de um povo diante do domínio ideológico imposto pelos golpistas.

No momento que recordamos os 55 anos do golpe faz-se necessário voltarmos nossos ‘olhares jornalísticos’ para as violências sofridas pela nossa categoria na ditadura civil-militar, para os casos de censura e cerceamento e traçarmos um paralelo do atual momento que vivemos, onde o chefe da nação vivifica a morte ao determinar a “celebração de 1964”. Que as batalhas do passado sirvam para nortear nosso presente e o futuro. Rememorar o passado para que nossas páginas não sejam reescritas por linhas tortas.