Um histórico de manipulações ruralistas contra o Governo e a sociedade acaba chancelado por Ricardo Salles

A decisão de Salles segue uma exigência feita pela Federação da Agricultura do Paraná (FAEP) e pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA) ao Governo e anula uma decisão do próprio Ministério do Meio Ambiente, de 2017, de respeitar e considerar a Lei da Mata Atlântica




FonteObservatório de Justiça e Conservação

Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles. Foto: Marcos Corrêa/PR

No dia 06 de abril, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles determinou que, a partir de agora, os desmatamentos irregulares feitos na Mata Atlântica até 2008 serão anistiados (ignorados) ou terão recomposição menor, seguindo regra prevista no novo Código Florestal. Até então, o Ministério do Meio Ambiente usava o entendimento de que a regra vigente era a expressa na Lei da Mata Atlântica, que prevê multa e recuperação de toda área desmatada sem autorização a partir de 1993.

O novo Código Florestal (Lei 12.651/2012) determina que toda ocupação de área de preservação permanente (APP) – topo de morro e beira de rio e nascentes – feita em propriedade rural até julho de 2008 deverá ser considerada “área consolidada” e as atividades nelas inseridas estão autorizadas a continuar. Para isso, o proprietário que desmatou é obrigado a se inscrever no Cadastro Ambiental Rural e aderir ao Programa de Regularização Ambiental (PRA). A partir disso, ele terá a obrigação de recompor essa mata desmatada em 1 metro (se a propriedade tem até 4 módulos fiscais), 8 metros (se a propriedade tem entre 5 e 15 módulos fiscais) ou 15 metros (se a propriedade tem mais de 15 módulos fiscais). Uma APP desta proporção, no entanto, não garante a proteção de um rio, por exemplo, que acaba sujeito a erosão do solo e à contaminação da água por agrotóxicos.

Pela regra da lei da Mata Atlântica, todo desmatamento de vegetação no bioma só é permitido com autorização e nunca em áreas de preservação permanente (APPs). Ou seja: não há a hipótese legal de considerar essa área desmatada sem autorização como “área consolidada”. Mesmo se a área foi toda desmatada para plantio ou sofreu incêndio, após 1993, ela ainda é considerada Mata Atlântica e o proprietário que a desmatou poderá sofrer com embargo e multa, além de ter que reflorestar o que derrubou.

A decisão de Salles segue uma exigência feita pela Federação da Agricultura do Paraná (FAEP) e pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA) à Advocacia Geral da União (AGU) e anula uma decisão do próprio Ministério do Meio Ambiente, de 2017, de respeitar e considerar a Lei da Mata Atlântica.

“Essa decisão vai contra o próprio princípio de legalidade, já que desconsidera uma lei anterior. É uma decisão ilegal e descabida”, diz o biólogo João de Deus Medeiros, coordenador-geral da Rede de ONGs da Mata Atlântica. “O ministro não pode escolher qual lei seguir. Se há uma lei geral de proteção de florestas e uma lei específica para uma floresta, aquela floresta vai ser regida pela lei específica”, diz Medeiros, que também é conselheiro do Observatório de Justiça e Conservação (OJC).

Para Mário Mantovani, diretor de Políticas Públicas da SOS Mata Atlântica, “a Lei da Mata Atlântica reúne um conjunto de regras técnicas e científicas que precisariam ser respeitadas. E que o que Salles propõem com a alteração é que se façam normas políticas para atender a interesses de grupos com intenções absolutamente questionáveis”, reforça.

Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, Foto: Marcos Corrêa/PR

Manipulação antiga

A decisão de Salles, e que afeta o Governo e a sociedade, atende a um desejo antigo da FAEP e da CNA, que, há anos, buscam driblar a lei e fazer com que o Ministério de Agricultura reconheça a aplicabilidade do novo Código Florestal para todo o território brasileiro, incluindo áreas do bioma da Mata Atlântica, que abrange estados como o Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

O pedido foi feito, evidentemente, porque infrações cometidas pelos produtores rurais do Paraná estavam recebendo multas do Ibama baseadas na Lei da Mata Atlântica, o que, constitucionalmente é o correto. Essa legislação existe desde 1993, a partir da criação do decreto 750. Em 2006, foi ratificada por meio da Lei da Mata Atlântica para, justamente, assegurar a proteção do pouco que restou dessa vegetação, que foi vítima de uma exploração irresponsável e desenfreada nas últimas décadas.

Apesar da tremenda violência da defesa, faz tempo que a FAEP busca defender junto à Casa Civil da Presidência da República que haveria um “erro conceitual” cometido pelo antigo ministro do Meio Ambiente, Zequinha Sarney. Na época em que estava em frente ao cargo, de 2016 a 2018, o ex-ministro defendia que, nas áreas abrangidas pelo bioma da Mata Atlântica o conceito de “áreas consolidadas”, previstas no novo Código Florestal não poderia ser válido. Mas desde a aprovação do novo Código Florestal, também conhecido como “Lei de Proteção da Vegetação Nativa”, em 2012, entidades do agronegócio tentam fazer valer o marco temporal de julho de 2008, que considera todo desmatamento irregular em APP ou em Reserva Legal como “áreas consolidadas”. Desmatamentos ilegais ocorridos até essa data não podem sofrer multas e tem regras mais frouxas para a recomposição.

Mas para o Ministério do Meio Ambiente, a regra geral não valia para a Mata Atlântica, o único bioma do país que conta com uma lei específica de proteção: a Lei da Mata Atlântica. A coerência e rigidez da regra embasou, inclusive, uma operação de fiscalização que gerou uma série de multas em propriedades rurais no Sudeste do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul em 2015. A então ministra Izabella Teixeira chegou a ser convocada para se explicar na Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, convocação feita pelo deputado Assis de Couto (PDT-PR). A pressão ruralista funcionou e, por quase dois anos, o Ministério do Meio Ambiente deixou de aplicar multas na Mata Atlântica com base na Lei da Mata Atlântica.

Com as críticas, buscava a FAEP conseguir que os produtores rurais não pudessem mais ser multados com base no antigo Código Florestal e que os que fossem multados com base na Lei da Mata Atlântica pudessem pedir a anulação das autuações e irregularidades junto ao Ibama utilizando os fundamentos do Parecer nº 00115/2019/DECOR/CGU/AGU, de 6 de dezembro de 2019.

Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, Foto: Marcos Corrêa/PR

Violenta ilegalidade

A aprovação agora da manobra por Salles só sinaliza e reitera ainda mais o abuso da atitude, que contraria uma lei federal para beneficiar desmatadores, a bancada ruralista e a especulação imobiliária. Ao acatar as exigências da FAEP e CNA, Salles determinou que Ibama, ICMBio, Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro e as suas respectivas Procuradorias (PFEs e SEDE) passem a adotar as regras do Código Florestal na Mata Atlântica. Isso significa que todos os autos de infração, embargos e multas que tenham sido aplicados com base na Lei da Mata Atlântica serão anulados. Metade do passivo ambiental de Áreas de Preservação Ambiental no país, ou seja, áreas de topos de morro e matas ciliares que não poderiam ter sido desmatadas, estão localizados na Mata Atlântica. São cerca de quatro milhões de hectares localizados em 17 estados brasileiros. Os danos dessa decisão, além de absolutamente violentos, seriam imensuráveis.

O Ministério Público (MP) do Paraná, em conjunto com o Ministério Público Federal (MPF), protocolou dia 15 de abril uma recomendação administrativa para que a Superintendência do Ibama no Paraná e o Instituto Água e Terra (IAT, ex-IAP), ligado ao governo do Paraná, mantenham em suas fiscalizações a aplicação da Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006) para a proteção do bioma Mata Atlântica. O MP e o MPF dão cinco dias para que o Ibama e o IAT informem se acolheram ou não a recomendação administrativa. MPF e MP estaduais, em conjunto, expediram recomendações para os 17 estados do Brasil, considerando a gravidade da situação.

Para fazer resistência à violência, a Rede de ONGs da Mata Atlântica e o Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica também fizeram um parecer contra o despacho de Ricardo Salles. O documento foi enviado para a 4ª Câmara de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural (4CCR) do Ministério Público Federal, reforçando a necessidade de questionamentos formais contra a decisão do ministro Ricardo Salles. Entidades como a SOS Mata Atlântica também vão entrar com ação conjunta nos próximos dias.