Prefeitura e guarda municipal seguem pressionando ocupação em Curitiba

Mesmo sob proteção judicial, em local de propriedade duvidosa, famílias sofrem pressão por parte de órgãos municipais




FontePedro Carrano/Brasil de Fato

Foto: Giorgia Prates/BDF

Ruan é um jovem experimentado em movimentos por moradia, pai de quatro filhos, um deles a caminho no ventre de sua companheira grávida, Janaína. Trabalhador da construção civil desempregado, ele hoje vive em um barraco de 9 por 16 metros, na ocupação Nova Guaporé 2. Ao lado de vinte famílias de haitianos, 37 estrangeiros, em um total de cerca de 200 famílias, Ruan enfrenta o fantasma do desemprego, do subemprego, da miséria, que já alcança cerca de 39,9 milhões de pessoas no país governado por Bolsonaro (sem partido).

E, o mais gritante neste momento: sente a falta de política habitacional por parte do prefeito reeleito Rafael Greca (DEM).

Despejada da Cidade Industrial de Curitiba pouco antes do Natal, a Nova Guaporé 2 tenta se reerguer em uma área que abrigava um Lava Car, coberta por vegetação, pertencente, em tese, a Empreendimentos Comerciais Kikomar LTDA. Fica ao lado de outro terreno da imobiliária com o sugetivo nome de Construtora Patrão LTDA. Junto com disso, há uma área municipal incrustada no centro do terreno, embora é fato que a relação entre a propriedade privada e a área reivindicada pelo município não está bem evidente neste caso.

A reportagem constatou um dado que confirma essa confusão sobre quem é o proprietário da totalidade da área. Ao visitar presencialmente o suposto endereço da Kikomar LTDA, que consta no pedido de reintegração de posse da área, constatou que se trata de um endereço residencial que não tem nada a ver com possíveis proprietários do terreno.

Região valorizada

Ao contrário de ocupações ocorridas na capital e região metropolitana desde 2015, a Guaporé tem um diferencial: localiza-se no bairro Campo Comprido, em área relativamente perto do centro, longe da chamada periferia-extrema de Curitiba, em região valorizada da cidade.

Nos dias de sol, crianças brincam soltas na comunidade. Cães e galinhas também. Laudicéia, a Laudi, organizava o coro das crianças para a entrada do ano novo. Henrique, musicista que fez parte do coro da Universidade Federal do Paraná, faz vídeos com o celular enquanto montava o seu barraco. O preço do aluguel tornou-se para muitos ali simplesmente impossível, sobretudo em um janeiro no qual 67 milhões de brasileiros não receberão mais o auxílio emergencial. No intervalo de três semanas, a Nova Guaporé é a terceira ocupação em Curitiba que ocorre com a presença de, no mínimo, 200 famílias.

Quando despejada em dezembro, a comunidade causou comoção na opinião pública paranaense, afinal 311 famílias foram para uma rua de terra com seus pertences, em plena pandemia, em um final de ano chuvoso. Agora, na nova área, estão sob resguardo provisório da seguinte medida: a juíza Patrícia de Fúgio Lajes de Lima, da 1ª Vara Cível, suspendeu ação de reintegração de posse, diante de incertezas quanto à posse do terreno, levando em conta, textualmente, a necessidade das famílias carentes.

Assim mesmo, prefeitura, administração regional do bairro Portão e a guarda municipal têm fomentado conflitos e tensões quase diárias com as famílias. O que parecia resolvido depois da construção da cerca municipal (saiba mais abaixo), logo se transformou em novo foco de tensão, dúvidas, ameaças e gasto de energia sem solução concreta.

A guarda municipal esteve na Nova Guaporé 2 nos dias 5 e 6 de janeiro (terça), sem apresentar documentação ou mandato, sem explicar direito no momento as razões da inusitada visita. Ocupantes relatam um trato abusivo e intimidador por parte de alguns integrantes, algo que pôde ser constatado pela reportagem, que já tem acompanhado o local desde o dia 23 de dezembro.

A prefeitura, por sua vez, por meio de assessoria de imprensa, alega que “equipes da Administração Regional Portão e da Guarda Municipal estiveram no local em atendimento a denúncias de ocupação irregular de área de propriedade da Prefeitura de Curitiba – vizinha à ocupação -, e desmatamento ilegal na região”.

Disputa em torno de uma grade e alguns metros quadrados

Antes disso, no dia 28 de dezembro, o motivo de tensão na Nova Guaporé 2 era o desejo da prefeitura de Greca em separar com uma cerca de arame o quadrante pertencente ao município, conforme planta do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC).

Passaram-se então três dias com a presença de um efetivo armado da guarda municipal, o que contrastava com a tranquilidade dos moradores locais, que não queriam guerra com ninguém. Rapidamente, surgiram problemas sobre a demarcação da área pública e a situação daquelas famílias cuja casa estava “para dentro da cerca” recém erguida pela prefeitura. Dúvidas surgiram também sobre a própria demarcação da área devem ser matéria de investigação futura da Defensoria Pública do Paraná.

No começo, foi consenso entre lideranças da ocupação e a regional Portão que nenhuma casa seria derrubada, nenhuma família removida ou agredida. Esta negociação está registrada e contou com a presença de movimentos sociais apoiadores e do mandato do vereador Renato Freitas (PT). A princípio, a grade poderia até mesmo ser desviada para não passar em frente a dois barracos de famílias.

O administrador da regional Portão, Gerson Gunha, naquele momento concordou com a indicação. “Não vai ter violência nenhuma, é só respeitar os meninos (funcionários da prefeitura) que estão colocando a cerca”, afirmou na época. “Só estamos fazendo a cerca, para delimitar o terreno do município”, garantiu Gerson, já em um tom bem mais tranquilo na negociação após a chegada do vereador Renato.

Porém, no dia seguinte, a comunidade conheceu o oficial de justiça, com ordem para retirada dos barracos do terreno municipal. Com as cercas e grades finalmente erguidas, o mesmo Grunha deu a entender que, no prazo de 15 dias, haveria retirada para os que ainda se mantivessem ali, do lado de “dentro” da cerca. A novela e a tensão continuavam.

As ações da guarda se devem também à preocupação do poder público municipal com novo trecho do terreno ocupado na parte de baixo pelas famílias, área que considera-se particular, fora do quadrante municipal. Neste sentido, das duas uma: ou a prefeitura está atuando na preservação de um imóvel que é privado. Ou a documentação da área não está nítida sobre o que é público e o que é privado. Ou as duas coisas ao mesmo tempo. Na resposta da prefeitura à reportagem esta questão não está nítida. “A Prefeitura esclarece que a continua monitorando o local demarcado como área municipal, inclusive para garantir que os limites sejam respeitados”, afirma a gestão municipal. E nas inúmeras incursões da gestão até a Nova Guaporé 2 nenhum documento ou mapeamento tem sido apresentado. A disputa segue, metro a metro, pelo terreno.

Envio de tropas, mas e as secretarias?

O que intriga é pensar que Greca tem deslocado diariamente contingente da guarda municipal para a área, sob argumento de denúncia de moradores do entorno, porém ainda não enviou representantes de secretarias para dialogar com as famílias. O próprio Gunha, questionado por elas, afirmou que a prefeitura poderia tomar esta atitude. Mas o ano começou e as famílias têm visto apenas o uniforme azul da guarda do município.

Gunha sugeriu a entrada no cadastramento da Cohab a partir do questionamento de uma família – a mesma orientação confirmada pela assessoria da prefeitura quando indagamos sobre se haveria ou não a dita reunião. No entanto, é certo que hoje a fila da Cohab apresenta 500 páginas no site da companhia mista, em um total de 42892 nomes inscritos no cadastro.

– “É possível vir uma equipe da prefeitura, com secretarias?”, perguntou a reportagem para Grunha, no episódio de construção da cerca.

– “(A prefeitura está aqui) Desde o primeiro dia, desde quando chegou a ocupação em área particular. Mas tivemos acordos não cumpridos, de cortar árvore”, afirmou.

Demanda por moradia apenas aumenta no Brasil

A demanda por moradia no Brasil deve apenas aumentar e cabe a pergunta sobre como governo federal, estadual, capitais e grandes municípios têm se preparado. Dados da ong Habitat Brasil mostram que o Brasil tem, pelo menos, 6,9 milhões de famílias sem casa para morar. Ao mesmo tempo, existem 7,9 milhões de imóveis vagos no Brasil. O que se traduz na imagem de que há muitas pessoas sem casa e também casas sem pessoas.

A terra deveria ser do trabalhador e da trabalhadora, como um direito, porém é muito cara. As cidades brasileiras apresentam o metro quadrado mais caro da América Latina.

Ingrid tem 19 anos, morava com a mãe na Cidade Industrial de Curitiba, mas escolheu ir para a ocupação quando a mãe decidiu morar no litoral. A jovem sonha em ser perita policial, mas por hora pensa em fazer curso de bombeiros. Ela está com mais sete pessoas em um barraco, daí a urgência em conseguir os kits para ter o barraco próprio, o que é urgente em tempos de pandemia. Tem mais três irmãos, porém nenhum deles está ali.

Já Roberto é dono de uma pequena quitanda na Cidade Industrial de Curitiba (CIC), também relatou dificuldades no pagamento do aluguel, ainda mais com a queda de clientela que teve durante a pandemia. “Ficou apertado com a crise da pandemia, sem poder abrir o negócio aos domingos. A gente só quer moradia, seria tão bom, não queremos borrachada”, afirma, fazendo questão de ressaltar a necessidade de uma solução negociada para as famílias.

Prefeitura afirma que seguirá monitorando o local mas não fala em negociar

Questionada pela reportagem, a prefeitura de Curitiba, via assessoria de imprensa, não mencionou a possível reunião com as famílias, afirmação sugerida pela regional Portão a partir de pressão de moradores e do mandato de Renato Freitas (PT). A gestão apenas orientou as famílias a buscar a inscrição no cadastro da Cohab, como foi exposto na reportagem acima. Segue o trecho restante da resposta, abaixo:

“No dia 5/1, equipes da Administração Regional Portão e da Guarda Municipal estiveram no local em atendimento a denúncias de ocupação irregular de área de propriedade da Prefeitura de Curitiba – vizinha à ocupação -, e desmatamento ilegal na região.

As equipes encontraram início de construção e madeiras em área da Prefeitura, constatando a ocupação irregular. As pessoas foram orientadas a retirar os materiais do terreno público e a respeitar os limites da área.

A Prefeitura esclarece que a continua monitorando o local demarcado como área municipal, inclusive para garantir que os limites sejam respeitados”.