Mitologias indígenas

(...) a tentativa de marcar de forma indistinta toda esta pluralidade pelo termo “índios”, termina por desumanizar e descaracterizar toda a imensa riqueza destes povos, os afogando em um coletivo anônimo que não condiz com a realidade





Povo Avá-Guarani no Paraná. Foto: Paulo Porto

Paulo Porto*

No mês de abril as atenções se voltam aos povos indígenas. É como se eles fossem “redescobertos” novamente. E nesta redescoberta várias mitologias e equívocos históricos também são ressuscitados seja por tarefas escolares (bem intencionadas ou não), seja por parte de reportagens “especializadas” de parte da grande mídia coorporativa. Por isso, nesse momento, vale a pena debater e questionar este imaginário construído por todos estes anos de preconceito e de conquista cultural e territorial.

Inicialmente se faz necessário repudiarmos a palavra “descoberta”, afinal o que ocorreu nos idos de 1500 com a vinda das hordas portuguesas foi uma conquista clássica, de um povo sobre outro. Nada relacionado com o inocente significado de descobrir algo. O que houve foi uma conquista violentíssima com consequências trágicas aos povos desta terra. Consequências que estes povos seguem vivenciando nas áreas não demarcadas, no assassinato de suas lideranças políticas e culturais e na negação das futuras gerações.

Somos um dos países que mais assassina seus povos originários. Somente em 2019 foram 113 homicídios de indígenas em solo brasileiro, em sua grande maioria devido a conflitos territoriais e casos de intolerância. O conceito de “descoberta” absolve o conquistador e as demais gerações de todas mazelas cometidas contra estes povos, não passando de uma narrativa oportunista e uma tentativa de camuflar seus crimes históricos e lesa humanidade.

O segundo mito a ser combatido é o termo “índio”. Na verde não existem “índios do Brasil”, existem povos indígenas com sua imensa diversidade em termos de língua, cultura, hábitos, religiosidade e relação com a natureza. Neste exato momento temos o privilégio de conviver com mais de 300 povos compostos por cerca de 900 mil indígenas. Somente no Paraná temos três etnias; os Guarani, os Kaingang e os Xetá, cada qual com sua história com sua identidade e lógica cultural. Esta tentativa de marcar de forma indistinta toda esta pluralidade pelo termo “índios”, termina por desumanizar e descaracterizar toda a imensa riqueza destes povos, os afogando em um coletivo anônimo que nem de longe condiz com a realidade.

O terceiro mito é questão territorial, central para estes povos, afinal, não se pode pensar, solidarizar ou compreender a temática indígena sem debater a centralidade da terra. Como já afirmou o jurista Carlos Marés, a demarcação de uma área indígena é sempre “uma derrota para o passado, uma vitória para o presente e um grande desafio para o futuro”. Pois a demarcação é sempre um confinamento em relação as terras originais, uma vitória no tempo presente devido ao avanço da sociedade não índia e um problema para as futuras gerações pois a comunidade aumentará, mas os limites territoriais não. Lembrando que o Paraná, onde alguns deputados federais pagos pelo agronegócio afirmam existir “muita terra para pouco índio”, é um dos estados onde temos menos terra demarcada, com somente 0,4% do nosso território ocupado por áreas indígenas. Uma marca patética se não fosse trágica.

O quarto mito vem do conceito da “aculturação”. Afinal nós temos um estereótipo de indígena consolidado pelo senso comum, como pessoas que não falam português, vivem da caça e da pesca, andam pintados, vestidos com tangas, colares e cocares de penas. E quando nos deparamos com povos de maior contato – como no caso do Paraná – que obviamente não atendem estes requisitos rotulamos como “índios aculturados”. O que esta arrogante visão colonialista não percebe é que estes grupos (como o caso dos Guarani e Kaingang) continuam falando a língua materna nos espaços domésticos, possuem um modo específico de ver e perceber o mundo e perpetuam toda sua tradição de caráter mais original. Este olhar não consegue penetrar além do visível e perceber que ali existe uma cultura distinta em constante reelaboração, o que não quer dizer, uma cultura dominada e morta. É necessário entender estas culturas como algo sujeito a acréscimos e reorganizações constantes. Aliás, como em qualquer cultura. Subtrair destes povos sua possibilidade de modificar-se culturalmente é subtrair a própria humanidade. E lamentavelmente temos feito isto.

Um quinto e último mito é a narrativa tão zelosamente construída pela ditos historiadores oficiais de diversas cidades e livros didáticos: o chamado “vazio demográfico”. Isto é, a versão histórica de que foram os pioneiros que desbravaram as vastas terras do Paraná, reforçando a retórica que ouvimos muito em todas regiões do Estado de que “aqui não havia índio”. Bobagem prontamente desmentida a partir de qualquer leitura mais aprofundada de nossa história e passando pela nomenclatura de nossos rios e cidades: Curitiba, Maringá, Arapongas, Foz do Iguaçu, Guaíra, Ivaiporã, entre outras. Nomes que certamente pertencem a uma terra com grande identidade indígena e na qual certamente “havia índio”.

Entretanto a grande questão seja o por quê que estes mitos e mentiras seguem perdurando até os dias de hoje, ainda que sem nenhuma verdade ou evidência histórica? A resposta talvez esteja na parcela da população que em 2018 elegeu um candidato que simbolicamente se autointitulava de “Mito”, que prometeu que caso eleito “não demarcaria nenhum palmo de terra indígena”, e assim o fez. Não só não demarcou como está trabalhando para que as atuais demarcações sejam revistas e as terras indígenas (ainda que demarcadas) possam ser arrendadas para o agronegócio.

Enfim, não há dúvida que o povo brasileiro tem uma monstruosa dívida com as comunidades indígenas, que passa pela conquista e tem passado pelas urnas. Que neste Abril Indígena esta seja a reflexão, que estes mitos sejam duramente combatidos e que em 2022 possamos saldar parte desta dívida.

* Paulo Porto é historiador, indigenista, professor universitário e ex-vereador em Cascavel (PR).